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Labirinto de Mentiras: de Giulio Ricciarelli
Labirinto de Mentiras: de Giulio Ricciarelli

NO LABIRINTO DO SILÊNCIO

 

FILMES ALEMÃES SOBRE O HOLOCAUSTO, CUJO EXEMPLAR MAIS RECENTE É “LABIRINTO DE MENTIRAS”, MOSTRAM QUE A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA É UM CAMPO DE DISPUTA PERMANENTE.

 

LABIRINTO DE MENTIRAS é um filme alemão dirigido pelo italiano Giulio Ricciarelli que aborda os primeiros julgamentos sobre crimes do nazismo durante a II Guerra Mundial realizado na Alemanha Ocidental.  O diretor também desenvolveu o argumento com Elisabeth Bartel, explorando fatos reais que se passaram a partir de 1958 em Frankfurt: o Estado alemão deu os primeiros passos para revelar sua culpa nas atrocidades cometidas em Auschwitz através de um jovem e ambicioso promotor, Johann Radmann (Alexander Fehling).

 

Os reflexos do cenário político internacional podem ser analisados pela sua projeção nas telas.  Em 1947, foi lançado um dos marcos do renascimento do cinema alemão, OS ASSASSINOS ESTÃO ENTRE NÓS (Die Mörder sind unter uns), de Wolfgang Staudte, sobre um criminoso de guerra que vive como um respeitável cidadão.  Em seguida veio O CASAMENTO NAS SOMBRAS (Ehe im Schatten), de Kurt Maetzig, e, em 1948, MORITURI, de Eugen York.  Ambos os filmes abordam questões sobre o comportamento criminoso do regime nos campos de concentração.  Porém, esse enfoque realista e de memória recente foi abandonado na ânsia de reconstruir o país.  Para os norte-americanos, a mudança de perspectiva também fazia sentido: vencido o nazismo na Europa, o novo adversário era o até então aliado de ocasião, o comunismo, que havia ampliado seu controle sobre grande parte do continente.

  

A divisão da Alemanha em 1948 cristalizou o fim da desnazificação no Ocidente.  O julgamento de Nuremberg, assim como o filme ATROCIDADES NAZISTAS, que serviu de prova no processo e foi exibido durante um breve período em cinemas nos EUA e como material educacional na campanha de desnazificação na Alemanha, eram então página virada.  Já sobre os escombros do Reich de mil anos, uma árdua tarefa de reconstrução devia ser empregada por dois modelos diametralmente diferentes, e em condições materiais desequilibradas.  Os primeiros movimentos e tensões da Guerra Fria começaram ainda antes do final da guerra, e ganharam em intensidade nos anos seguintes.

 

Vale Lembrar que o roteiro de LABIRINTO DE MENTIRAS leva a uma reflexão sobre a memória no pós guerra e sobre como se deu a reconstrução da porção ocidental da Alemanha.  Contando com amplo apoio material e financeiro dos EUA (via Plano Marshall), a República Federal da Alemanha, ou Alemanha Ocidental, virou a vitrine do capitalismo na Europa, haja vista que entre 1953 e 1961 mais dinheiro foi investido em Berlim Ocidental do que em toda a América Latina.  Em 1958, era notável a recuperação econômica acelerada e pujante.  Entretanto, no país reinava uma memória seletiva, através da qual se omitia, escondia-se e negava-se o teor dos crimes praticados em nome do Estado nazista.  A construção dessa memória parcial e omissa não se deve exclusivamente aos alemães ocidentais.  Os norte-americanos importaram uma quantidade impressionante de tecnologia e de mão de obra nazista qualificada.  Assim, para obter o know-how e viabilizar o uso de novas armas na Guerra Fria, foram importados técnicos em foguetes, em química, em psicologia, em guerra bacteriológica, em segurança e em espionagem.  Em momentos diferentes do filme de Ricciarelli, o protagonista estabelece diálogos com o responsável pelo arquivo norte-americano na Alemanha, major Parker, que dispõe de todas as provas e parece sempre saber mais do que revela.  Consta que o Dr. Globke, conselheiro do Chanceler da RFA e capitão da recuperação alemã Konrad Adenauer, esteve empenhado na compra de manuscritos sobre seus textos racistas ligados às Leis de Nuremberg, de 1935.

  

Talvez o silêncio total sobre a guerra e, principalmente, sobre Auschwitz, por parte de todos os alemães pareça um exagero.  Entretanto, dá o tom já levantado em outro clássico sobre as memórias do pós-guerra na Alemanha, em UMA CIDADE SEM PASSADO (Das Schreckline Mädchen, 1990, de Michael Verhoeven).  A trama mostra-se muito parecida com a do labirinto de silêncio (schweigens) do título original do filme de Ricciarelli, mas baseado na pesquisa de uma estudante sobre o que se passou em sua cidade durante a II Guerra.  A pesquisadora encontra um muro de silêncio oficial e cotidiano, obstruindo suas investigações e escondendo a realidade de uma colaboração total com o nazismo.

 

Na busca pela justiça, Radmann se defronta com as mentiras sobre seu próprio passado.  O filme menciona a adesão entusiástica dos advogados ao partido nazista, fato real, assim como a maioria dos médicos foram grandes apoiadores do partido que lhes reservou mercado de trabalho proibindo os judeus de atuar.  À luz da verdade, a maioria dos alemães foi de fato nazista por convicção, por conveniência ou porque obedecia a ordens.  A humanização do nazismo é chocante, mas verdadeira.  Os humanos são capazes de fazer coisas horríveis, até mesmo hediondas, disfarçadas ou justificadas em uma racionalidade trôpega.  Em A QUEDA (Der Untergang, 2004), de Oliver Hirschbiegel, Hitler foi retratado, para a surpresa de alguns, como um ser humano, agindo dentro de uma lógica inerente a sua ideologia.  Em UM HOMEM BOM (2008), do brasileiro Vicente Amorim, a conivência e a obediência sem contestação foram mostradas em toda sua face perniciosa.  Já em O LEITOR (The Reader, 2008), de Stephen Daldry, fica claro que nazistas não necessariamente precisavam ser monstros, mas pessoas comuns que participaram de um regime criminoso.

  

A memória é um espaço em construção e disputa permanente, os alemães ocidentais levaram 13 anos para iniciar o resgate da justiça e reconhecimento da culpa do Estado e dos seus servidores.  Guardadas as devidas proporções, no Brasil já se passaram 21 anos do fim da ditadura civil-militar e ainda nos encontramos em um labirinto de mentiras e silêncio.

 

 

Fonte:  ZeroHora/Nilo André Piana de Castro (Doutor em Ciência Política pela UFRGS e professor de História do Colégio de Aplicação da UFRGS) em 10 de janeiro de 2016.