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Raul Pompeia: O Ateneu — 130 Anos
Raul Pompeia: O Ateneu — 130 Anos

O ATENEU / 130 ANOS

MEMÓRIAS PERDIDAS

MEMÓRIAS SEM CÁRCERE

O LUGAR d’O ATENEU

 

Repare: com poucas variações, as linhas de maiores clássicos da prosa brasileira comportam DOM CASMURRO, QUINCAS BORBA e MEMÓRIAS PÓSTUMAS, mais GRANDE SERTÃO, POLICARPO QUARESMA, OS SERTÕES, VIDAS SECAS, MACUNAÍMA e A HORA DA ESTRELA ou A PAIXÃO SEGUNDO G.H. É, mais ou menos, a noção cristalizada do nosso cânone (Blargh!, reagiria um “pós-moderno”), do que de melhor os escritores daqui já produziram.

 

Mas o que seria da cultura sem confronto de ideias? Vamos a ele. Até o título de Euclides da Cunha, a lista parece muito justa. VIDAS SECAS, porém, abre a controvérsia. Bem poderia ser trocado por um menos lembrado de Graciliano Ramos, ANGÚSTIA. E que tal Mário de Andrade e a supervalorizada Clarice Lispector cederem seus lugares a outro também pouco lembrado, injustamente pouco lembrado? O ATENEU, de Raul Pompéia (1863-1895), é que poderia estar na lista. Completando 130 anos de publicação neste 2018, o romance é mais bem realizado que MACUNAÍMA – e sem a pretensão de “sintetizar” o Brasil – e mais amplamente reflexivo que os textos clariceanos – e sem aquela lenga-lenga,

 

Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu” é a frase de abertura. Vai encontrar uma obra singular na literatura brasileira, leitor, diz-lhe este articulista. O que a faz singular é, em especial, a ambientação. O ATENEU se passa inteiramente no espaço de uma escola. É curioso que esse cenário, escola, seja pouco empregado aqui, MÚSICA AO LONGE (1936), de Erico Verissimo, MANUAL DE TAPEÇARIA (1985), de Nilma Lacerda, e outros romances e contos têm protagonistas professores. DOIDINHO (1933), de José Lins do Rego, ambientado em parte num internato. Mas uma narrativa toda transcorrida num colégio, que não seja uma infantojuvenil, entre as obras “sérias” (não as ditas “best-sellers”) talvez só tenhamos em O ATENEU e INFORMAÇÃO AO CRUCIFICADO (1961), de Carlos Heitor Cony. Escola é tema universal bastante presente nas artes – o cinema, por exemplo, já cansou de abordá-lo, em produções como o sentimentalista SOCIEDADE DOS POETAS MORTOS (EUA, 1987), o delicado ADEUS, MENINOS (França, 1987) e o nervoso ENTRE OS MUROS DA ESCOLA (França, 2010). Mas à ficção literária brasileira o tema parece interessar pouco (e evitemos aqui conclusões sociológicas para a questão).

 

Naquela era de ouro do romance, o século 19, O ATENEU seguiu um caminho comum: foi publicado em folhetim, no jornal carioca Gazeta de Notícias, para mais adiante, no mesmo 1888, sair em livro. Algo inovadora para a literatura brasileira de então (Machado lançara MEMÓRIAS PÓSTUMAS sete anos antes), é uma narrativa sem ordem cronológica e sem exatamente um enredo. O personagem-narrador, Sérgio, adulto, costura lembranças de episódios da adolescência vivida como aluno interno do colégio. Ateneu às reflexões e emoções que elas lhe causam e a uma análise psicológica dos personagens envolvidos.

 

O colégio projetava uma imagem imponente à sociedade carioca, imagem que o diretor Aristarco e os professores, com falas pomposas e ocas, esforçavam-se para manter. Não contavam com a perspicácia de Sérgio, que num arco dramático de perda da inocência, expõe como foi percebendo e até aproveitando os ardis do local. As ilusões que mantinha sobre o internato, nutridas pelas visitas prévias que fez, desmoronam. Lá, Sérgio de fato “encontra o mundo”: poucos seres humanos admiráveis em meio a muitos mesquinhos, capazes de atos que ele, menino de 11 anos, não imaginava.

 

Hábil nas descrições, Pompéia faz do personagem um narrador nada benevolente co os professores e colegas – um deles tem uma “meiguice viscosa de crápula antigo”. Se quase resvala no sentimentalismo, reergue-se logo (“Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu tolhi a tempo de ser forte”), e é preciso ao esmiuçar o espírito de seu protagonista. “Estava aclimado, mas eu me aclimara pelo desalento, como um encarcerado no seu cárcere. Depois que sacudi fora a tranca dos ideais ingênuos, sentia-me vazio de ânimo; nunca percebi tanto a espiritualidade imponderável da alma: o vácuo habitava-me dentro” é, convenhamos, um trecho que diz mais do que, por exemplo, “A desistência é uma revelação. (…) viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono”, deixei de existir sendo” e outras frases pseudoprofundas cometidas por Clarice Lispector.

 

É livro de prosa fluente e história tocante. Impossível passar incólume, pois, meninos e meninas escolares que todos fomos, reconhecemos pelo menos aspectos das situações e pessoas descrita ali: diversões com colegas, remorso, rebelião, descoberta de assuntos e autores, um diretor inebriado com a posição de (micro) poder, pouca generosidade desinteressada (“Cada rosto amável daquela infância era a máscara de uma falsidade”) e muita implicância dos colegas – o que hoje chamamos de bullying. “Tudo ameaça os indefesos”, observa Sérgio, receoso com o “microcosmo” que via no Ateneu. E com razão. Os choques que leva no internato são, e aqui vai uma leitura inevitável, os choques que a vida em sociedade proporciona. Escola é um ensaio para o convívio social, a vida com o outro, relação da qual faíscas sempre se soltam. Sérgio fere-se, mas também aprende a se afirmar. O Ateneu nos reforça que aprender a lidar com o mundo é tarefa árdua. Algo que advém dos solavancos. Amadurecer, saber que a vida não é perfeitinha, politicamente correta, do jeitinho que a gente quer: pois é, depois de 130 anos, o livro ainda tem muito a ensinar aos jovens que o lerem.

 

Já aos escritores brasileiros de hoje, o semiautobiográfico O ATENEU é uma prova de que é possível fazer literatura ensimesmada, íntima, sem se perder em narcisismo ou metalinguagem excessiva. Os melhores romances são os que olham para dentro e para fora, ao mesmo tempo, num diálogo. É prova também de como é mais rico um texto literário que supera reducionismos políticos e que não se deixa levar pela modinha ideológica da hora, preocupando-se isso sim, com os dilemas morais que brotam em todo ser humano, de qualquer tempo.

 

O tempo, É justamente sobre a passagem dele que reflete o marcante parágrafo final. Como o Ateneu colégio também acaba, por ação de um incêndio, Sérgio nota que o tempo se encarrega de dar fim a tudo. “Saudades verdadeiramente? Puras recordações, saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o funeral para sempre das horas.” Indestrutível é a memória. Para o bem ou para o mal, é o que ninguém nos tira. Perdura também a arte – como a expressa em O ATENEU, que, por tantas dimensões, deve ser mais lembrada e comentada. Eis este Caderno ajudando.

 

Fonte: Correio do Povo/CS/Lucas Colombo/Jornalista e professor, editor do site Mínimo Múltiplo em 22/12/2018.

 

DEPRESSIVO, ESCRITOR SE MATOU APÓS CONTROVÉRSIA POLÍTICA

 

Raul Pompéia teve sua carreira de escritor e jornalista interrompida por causa de um discurso inflamado que fez no cemitério São João Batista, em Botafogo, no sepultamento do ex-presidente Floriano Peixoto, a quem ele apoiava como político, afinal tinha cargo de confiança no governo e era época de eleição. O candidato eleito foi Prudente de Moraes, que, por sinal, nada gostou e demitiu Pompéia das funções de Diretor da Biblioteca Nacional e de professor de Mitologia da Escola Nacional de Belas Artes.

 

Isso o deixou impaciente, mais ainda com os ataques pessoais dos colegas e a recusa deles de publicar seus escritos para explicar o porquê do discurso no cemitério. Atuante nos debates de seu tempo, defensor do abolicionismo e da República, Pompéia era de pavio curto. Ele já tinha uma doença chamada depressão. Quando ficava depressivo, sua mãe o tratava.

 

No dia de Natal de 1895, chegou em casa e falou para ela: “Mãe, as provas estão corrigidas e pagas”. Eram as provas de O ATENEU, que havia vendido no ano anterior aos livreiros Alves e Cia. A mãe e as irmãs perguntavam o que tinha acontecido, ele só respondia que estava tudo bem. Todas o vigiavam e rezavam o tempo inteiro, e ele mergulhado naquela crise terrível de neurastenia. Pompéia recolheu-se em seguida ao quarto com sacada que dava para a rua. Decidido, escreveu algumas linhas que lacrou num envelope para ser entregue à redação de A Notícia:

 

A ilustrada redação d’A Notícia.

 

Cumpro o dever de comunicar que, não havendo sido publicado p segundo artigo da minha colaboração, aceita aliás em termos benévolos, considero como sem efeito essa aceitação e agradeço a inserção do 25 de dezembro de 1895. RAUL Pompeia.” Tomou então a pena e rascunhou em meia folha de papel um curto bilhete, complementando o anterior, para reforçar as razões de seu gesto, a destacar o ponto central da enorme confusão de ideias que lhe rondava a mente.

 

À Notícia e ao Brasil declaro que sou um homem de honra”. Depois de datar e assinar, recostou-se a um divã e deu um tiro no peito. Eram 13h. Uma vez, dissera: “As horas da Vida são doze,. Mas uma hora existe que não incluímos nos reguladores da existência: é a hora da morte.”

  

Fonte: Correio do Povo/CS/José Mário dos Santos/Diretor do Centro Cultural Raul Pompéia, de Angra dos Reis (RJ), e organizador de um livro com as duas novelas escritas pelo autor. UMA TRAGÉDIA NO AMAZONAS (1880) e AS JOIAS DA COROA (1882), a ser lançado em breve. Em 22/12/2018