Translate this Page




ONLINE
6





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Benito Barreto por Deonísio da Silva
Benito Barreto por Deonísio da Silva

LIVROS MARCANTES PARA UM LEITOR QUE ENVELHECEU 

 

 

Para não me exibir, tentação de todo intelectual brasileiro para compensar o desprezo e a falta de reconhecimento de que é vítima todos os dias, vou dizendo de cara que li clássicos da antiga Roma no original em Latim e em Grego, sem que o mérito seja meu.

 

Minha mãe teve vocação para eu ser padre, e tornei-me presidiário infanto-juvenil por muitos anos.  E isto me fez um bem danado.  Ainda mais que cheguei ali gostando de ler e de estudar, gostos adquiridos na casa paterna e na Casa Paroquial, onde morei um ano antes de ir para o seminário.

  

Portanto, cheguei ao seminário gostando de ler e de estudar!  Li e estudei muito, ao contrário dos alunos de hoje que imploram, suplicam aos professores para que diminuam a qualidade das aulas, e eles possam, assim, ser aprovados sem estudar!  Acredito que na formação de todos nós é muito importante a relação bunda-cadeira-hora.  Sem esse recurso estratégico, nenhum professor, por mais talentoso que seja, pode ensinar alguma coisa a alguém.

 

Foi em casa que comecei minhas leituras, poucas e boas, continuadas na escola primária.  Comecei por episódios bíblicos com o Dilúvio, a Torre de Babel, Sodoma e Gomorra, presentes num resumo da Bíblia intitulado História Sagrada, que ficava ao lado do rádio na casa paterna.  Na biblioteca do Grupo Escolar, me apaixonei por lendas indígenas e contos de fada.

 

Logo eu chegava aos quatro Evangelhos, aprendidos aos pedaços quando coroinha, aprofundados depois nos anos de seminário.  Ministrava-se ali educação de alta qualidade no que hoje se chama ensino médio, os anos posteriores ao ensino fundamental e anteriores à entrada na universidade.

  

No seminário, a biblioteca, muito claramente, era um verdadeiro ninho.  O ninho dos pássaros que me encantavam em seus voos deslumbrantes para a minha imaginação de adolescente era ali.

 

E sempre há um amigo, um colega, um professor, alguém que nos diz uma coisa decisiva num momento decisivo.  Para mim, este alguém foi um colega de seminário chamado Wilson Volpato, hoje um próspero advogado e empresário, com quem partilho uma boa prosa de vez em quando, depois deste reencontro ocorrido por causa de um romance que escrevi tantos anos depois de nossa adolescência:  Teresa d’Ávila.  Ele é personagem à chef nas tramas.

 

Daquele ninho voaram para minhas mãos, em verso e em prosa, obras referenciais da literatura universal (Dante, Shakespeare), e da literatura de língua portuguesa, como Camões, Machado de Assis, José de Alencar, Visconde de Taunay etc. Este aprendizado não terminou.  Ainda outro dia ganhei de presente de um dos padres-professores daqueles anos uma bíblia originalíssima.  E de um colega daquele tempo, o empresário José de Souza Patrício, uma edição italiana da Divina Comédia, publicada pelo Vaticano com observações curiosíssimas.

  

No mestrado que fiz na UFRGS, em Porto Alegre, reli Graciliano Ramos e todo romance de 1930 a partir das luzes fulgurantes que tive de um dos melhores professores que já vi atuar: Guilhermino César.  E, antes, em Ijuí, onde fizera a graduação, tive um professor decisivo em minha formação de adulto, um docente chamado Gustavo Maciel, orientando de Eduardo Portella.

 

Eu já tinha chegado às  angústias e aflições de Alieksiéi Fiódorovicth Karamázov em OS IRMÃOS KARAMÁZOV, do homônimo deste personagem, Fiodor Dostoiévski.  Mas se aquele gigantesco painel me levara a voar tão longe, no doutorado em Letras na USP, décadas depois, o professor Boris Schnaiderman me mostrava outras coisas de Dostoiévski, não mais no telescópio do romance, mas no microscópio dos contos, especialmente em UMA ÁRVORE DE NATAL NA CASA DE CRISTO.

 

Os adultérios narrados por Tolstói em ANA KARENINA, e em GUERRA e paz; em MADAME BOVARY, de Flaubert; em D. H. Lawrence em O AMANTE DE LADY CHATTERLEY, mereceram de Guilhermino César referências espetaculares nas aulas, como o podem comprovar meus colegas de mestrado na UFRGS, mas nosso querido professor marcou-me muito mais com outras leituras de Graciliano Ramos, de Carlos Drummond de Andrade, a quem ele chamava mais ou menos “o Caulos”, como observou corretamente Sergius Gonzaga em outro artigo, ao falar do poema O SEQUESTRO de Guilhermino César, da lavra do amigo e admirador de nosso professor.  Só um grande para admirar outro grande daquele modo!  A regra geral no Brasil é a maledicência, quando não o desprezo, a indiferença e mesmo a calúnia entre pares.

  

Na USP, aprendi com Nádia Batella Gotlieb a ver melhor e mais profundamente a argúcia e as complexas sutilezas da prosa de Clarice Lispector.  Antes, na PUC, em Porto Alegre, o poeta e professor Gilberto Mendonça Telles me fizera reler os contos que eu já tinha lido ou a ler os novos com uma metodologia de todo curiosa e fértil: olhando mais o como tinham sido narrados do que o que tinham narrado.

 

E houve livros dos quais poucos falam, poucos lhes fazem referência, muitos lhes dão pouco valor ou os ignoram, e poucos lhes cobrem de elogios, endossos, aprovações, admiração.  Dos mais recentes, um dos casos mais desconcertantes para mim é o do escritor mineiro Benito Barreto, de 85 anos.

 

Benito Barreto, a quem o pai deu o nome de batismo Benito Mussolini Barreto, admirador do fascista que era, mas isto não impediu que o filho se tornasse comunista, tem uma obra impressionante.  Estreou em 1962 com PLATAFORMA VAZIA, marco inicial de quatro romances marcantes, que ele reuniu sob o título de OS GUAIANÃS, enfim levados por José Hildebrando Dacanal à Editora Mercado Aberto de Roque Jacoby, que os republicou reunidos em  1986.  Os outros títulos são: CAPELA DOS HOMENS, de 1968; MUTIRÃO PARA MATAR, de 1974, e CAFAIA, em 1975.

  

Penso que os quatro romances têm muito a ver com a própria biografia do autor, que militou no Partido Comunista Brasileiro, o velho PCB, e preparava a utopia de sua geração, que era uma revolução popular nos moldes das havidas na China, em Cuba, no Vietnã etc.

 

A década de 60 foi a década que mudou tudo.  Tudo era possível, de guerrilha à minissaia, dos Beatles à música sertaneja e à bossa-nova, da nouvelle vague ao cinema novo etc.  E também as guerrilhas que fracassaram no Brasil, mas que trouxeram seus frutos, bastando lembrar para isso que a atual presidente da República é uma ex guerrilheira urbana chamada Dilma Rousseff.

 

PARTE II

  

Benito Barreto voltou entre 2009 e 2012 com quatro romances reunidos sob nova tetralogia, desta vez abordando a Inconfidência Mineira, um dos primeiros e mais originais projetos de independência do Brasil.  É a SAGA DO CAMINHO NOVO.  Só mesmo uma crítica miserável, editores e resenhistas absolutamente alheios à produção literária nacional esqueceram-se destes quatro romances que, sem dúvida, um dia serão devidamente avaliados e integrados ao cânone.  Se nosso cânone literário dependesse da mídia, seria ainda mais pobre do que já é, mais falho do que já é, teria mais ausências do que já tem e consagraria mais nulidades do que já consagra.

 

Com o passar do tempo vi que o Brasil caminhou no campo literário para a consagração de nulidades, não mais um tanto inócuas, como aquelas do cânone, mas nulidades produtivas, que passaram a gerar outras nulidades.  Certa vez, o suplemento literário Folhetim, da Folha de S.Paulo, já falecido, como tantos outros, fez um número especial sobre escritores esquecidos.  Era a década de 80, eu morava em São Carlos-SP, nesta época.  Deixara Ijuí, onde cursara Letras e era professor, e Porto Alegre, onde fizera o mestrado, na UFRGS, porque passara em concurso público para a então única universidade federal do Estado de São Paulo, para fazer o doutorado em Letras na USP, pois precisava trabalhar para poder estudar.

 

A UFSCar estava sediada ali porque o presidente da Câmara dos Deputados, Ernesto Pereira Lopes, trouxera a instituição para o interior do estado, já no governo Garrastazu Médici.  Eu era professor naquela universidade, onde liderei, aliás, a fundação do curso de Letras e da Editora Universitária, e onde permaneci até aposentar-me por tempo de serviço, em 2003.  Lecionava ali o filósofo Bento Prado Jr.

 

Fomos convidados pelos editores do Folhetim a escrever sobre falsos escritores.  Não pude aceitar.  Eu escrevia resenhas e publicava alguns contos nos jornais concorrentes: o Estadão e o Jornal da Tarde.  Mas Bento escreveu sobre um poeta esquecido, chamado Agrícola de Almeida.  Lembro também que outro (Talvez tenha sido Caio Fernando Abreu) escreveu sobre o exame da literatura a partir do horóscopo dos escritores.

 

Para minha surpresa, meses depois, voltando a Porto Alegre para um evento universitário, qual não foi minha surpresa ao saber por colega de mesa no simpósio que surgira uma nova forma de abordar nossas letras (pelo horóscopo) e que novos escritores, antes esquecidos, estavam sendo agora revelados, sendo o caso mais grave o do poeta Agrícola de Almeida!

  

De lá para cá só piorou e eu já soube que uma universidade substituiu livros de leitura obrigatória por CDs com músicas obrigatórias.  Valha-nos quem?  Deus?  Nem Ele, pois neste sertão, quando vier, que venha armado, com o diz Guimarães Rosa no GRANDE SERTÃO: VEREDAS, que é aliás, não apenas o melhor romance brasileiro do século XX, mas outra obra referencial de nossas letras, que muito marcou minhas leituras, especialmente os episódios de Maria Mutema, o julgamento de Zé Bebelo e a cena final, quando o segredo de Diadorim é revelado.

 

PARTE III

 

O que leio hoje?  Mais releio do que leio.  Baixo muitos livros na internet e tenho uma boa biblioteca de livros impressos em minha residência.  E o que releio?  Machado, Borges, a Bíblia em outras línguas, Thomas Mann, Dostoiévski, Rubem Fonseca, Jorge Amado, os poemas de Carlos Nejar, de cuja edição fui o coordenador do projeto, Dante, Petrarca, Ovítlio, Virgílio, Sêneca, César (sim, De Belo Gallico é ainda fascinante para mim, sobretudo por ler um militar e político inteligente, peças raras hoje em dia), almanaques e dicionários (sou apaixonado por estes gêneros: eu não apenas consulto dicionários, eu os leio, é uma deformação que tenho).

  

Enfim, espero que a eternidade tenha uma imensa biblioteca, não importando o meu destino, seja céu, seja inferno.  O que importa é que eu encontre livros para ler!  É mais importante e mais agradável ler do que escrever.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Deonísio da Silva (Escritor com 34 livros publicados, Doutor em Letras pela USP, professor visitante titular de Literatura Brasileira e de Língua Portuguesa pela Universidade Estácio de Sá) em 26 de dezembro de 2015.