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Chaves de Leitura: para Ler Guimarães Rosa
Chaves de Leitura: para Ler Guimarães Rosa

CHAVES DE LEITURA PARA GUIMARÃES

 

Para ler escritores considerados difíceis tanto por especialistas em literatura quanto por leigos na área, muitas pessoas recorrem às chaves de leitura.  Afinal, uma ajudinha para vencer as páginas de uma obra famosa nunca é demais, nem será mal vista.  A expressão chaves de leitura deveria fazer-nos pensar nas informações que recolhemos para uma viagem.  Ao planejá-la, procuramos referências com pessoas ou com sites de turismo.  A investigação resulta em uma opção que abre os caminhos até nosso destino.  Com a chave de leitura selecionada por você, ocorre o mesmo.  O percurso até um escritor, no entanto, pode advir de uma chave que partilhamos com muitos leitores, inclusive com aquele autor cuja criação nos desafia.

 

Ler contistas de outros países e frequentar o cinema funcionam como chaves indiretas para a compreensão de um escritor com o João Guimarães Rosa.  Temas como a exploração, o amor incondicional e a maldade e a abordagem deles em autores poloneses, japoneses e norte-americanos abrem caminhos.  Já o modo de narrar típico de Rosa pode ser enfrentado com o auxilio dos recursos que usamos nas salas de cinema: a luz e as cores brotam das metáforas do escritor mineiro e pedem nossa interpretação.

  

Como o modo de contar dá acesso aos temas, comecemos por ele.  E, como muitos somos cinéfilos, a relevância dessa chave está justificada.  Na linguagem audiovisual, a iluminação pode indicar revelação, beleza, saída da cena, futuro, enfim, compõe o eixo narrativo.  Lembra da luz em “A invenção de Hugo Cabret”, de Spielberg?  Nas cartas que Rosa trocou com os pais, uma de suas preocupações era como expor, através de palavras, a luz de uma catedral italiana.  Ele reflete sobre como narrar a sensação de beleza de uma cena, de um momento.  Passagens de “A TERCEIRA MARGEM DO RIO”, PIRLIMPSIQUICE e SUBSTÂNCIA funcionam como lanternas que conduzem nosso olhar.  A encenação teatral sob as luzes do palco (“Fulge, Forte, Zé Boné! – freme a representação”) e a alvura do polvilho que refletirá em “Maria Êxita” (“Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda”) exemplificam o diálogo entre as metáforas e a iluminação concernente à evolução narrativa, manejo recorrente em PRIMEIRAS ESTÓRIAS, livro de 1962.

 

Se em PIRLIMPSIQUICE, os estudantes revertem as vaias em aplausos graças à encenação do drama criado por eles mesmos, o polvilho produzido nas terras de Sionésio o fará encontrar o amor de Maria Êxita em SUBSTÂNCIA.  As metáforas que aliam luz e força aos meninos no palco servem para mostrar quem está em cena e lidera e quem está fora, excluído do grupo pela classe social a que pertence, pelo papel subalterno em relação aos demais atores.  A brancura do polvilho intensificada pelo sol avisa ao leitor, no momento em que o dono da fazenda Samburá vai ver a jovem empregada trabalhar com a polpa: “Alvíssimo, era horrível, aquilo”.  Enquanto, na escola, as classes sociais articulam-se por uma questão de amizade entre iguais, a exploração da mão de obra infantil transformada em benefício de modo a permitir que a criança cresça sob um teto percorre a relação entre Sionésio, Maria Êxita e o produto da fazenda, o polvilho famoso na região.  Como você deve ter observado, a iluminação sobre a cena serve para demonstrar que a linguagem literária recobre uma realidade terrível.  O modo de narrar seduz o leitor que adentra os conflitos representados descobrindo o hiato entre forma e conteúdo.  A linguagem não pode resolver o problema socioeconômico e classista da sociedade brasileira; ela pode, apenas, expressar um impasse que alcança dimensões universais.  Se pensarmos em filmes como HEAVEN, de Susanne Bier, CAPITÃES DA AREIA, de Cecília Amado, e O CLUBE, de Pablo Larraín, a narração tem as luzes do século XXI, não acha?

  

O véu das sombras cobre aqueles que sofrem injustamente, aqueles ferozes e brutais, aqueles que temem.  Encontramos esse lusco-fusco em contos como FAMIGERADO ou OS IRMÃOS DAGOBÉ e, ainda, em A BENFAZEJA, todos de PRIMEIRAS ESTÓRIAS.  Mais adiante, falarei deste terceiro conto, unindo duas chaves de leitura.

 

Para aqueles que exercem sua curiosidade percorrendo feiras ou deixando-se atrair por estórias de outros países, os contos de Ryûnosuke Akutagawa podem ser uma chave já conhecida devido à proliferação da literatura japonesa no Brasil, ou uma possibilidade de nova leitura.  Se consultarmos os livros que Suzi Sperber elenca como aqueles lidos por Guimarães Rosa, encontraremos ali Rashômon e outros contos.  Akutagawa estende um caminho até o escritor mineiro, pois identificamos, em ambos, sob a beleza das imagens, a pior face do egoísmo humano.  Mesmo que a arte possa funcionar como redentora da vida comezinha, ela só o faz porque não oculta a feiura existente em nossa civilidade.

  

Comecemos pelo conto O MARTIR, protagonizado por um jovem que apareceu em Nagasaki e ganhou a estima de todos.  Em LORENZO, tudo é delicado e nobre, inclusive a morte e o segredo revelado.  A trama que leva à expulsão de Lorenzo, mescla-se a tensão de costumes imbricada a questões históricas, como a divulgação do cristianismo naquele país.  A igreja revela-se um dos cenários do conflito e uma figura impotente ante os fatos. O enredo e os contrastes de linguagem – as dificuldades com palavras e conceitos não existentes entre os japoneses – e de comportamento ajudam a nos prepararmos para as sobreposições usadas para o sertão.

 

Como Lorenzo, sem nome ou passado, o jovem de UM MOÇO MUITO BRANCO aparece em Serro Frio, comarca de Minas Gerais.  Nas duas estórias, os personagens são acolhidos pela comunidade local; nos dois casos, eles têm uma aparência sedutora devido aos traços e a certa serenidade que beneficia aqueles que os cercam.  No entanto, o desfecho é bem diverso e o contexto também.  A chave de leitura permite-nos acessar os símbolos em movimento na narração, mas preserva a surpresa que cada escritor se esforça por alcançar, mesmo que em diálogo com outro escritor.

  

E o que dizer da mendicância?  Em RASHÔMON, encontramos um servo de baixa condição, dispensado do trabalho pelo patrão, que espera a chuva passar sob um portal – Rashômon – da cidade de Quioto.  Preocupado pois a única saída que antevê é tornar-se ladrão, ele acaba em um embate com uma velha, assaltante de cadáveres.

 

As cenas em que o narrador revela o nojo com que o servo encara a mendicante que arranca os cabelos aos cadáveres mostram o assombro e a perda do senso ético de modo gradual.  Se, em um primeiro momento, o servo procura compreender o que está acontecendo pelo horror que sente, paulatinamente o narrador desencobre a naturalidade com que o personagem encara a situação e resolve ser ele próprio o ladrão, mas não dos mortos.  O desfecho da história é, ao mesmo tempo, clímax e previsão:  enquanto a velha se arrasta nua por entre os cadáveres, o narrador informa que nunca mais se ouviu falar do servo.  O foco vai do corpo maltratado para a vida do ladrão, como se pudesse alcançar um panorama futuro.  A fusão das imagens pela narração privilegia a violência em que os personagens estão envolvidos: a exploração mútua, a implacável miséria de uma vida cuja esperança reside no aviltamento de outrem.

  

Situação similar lemos em A BENFAZEJA.  Dentre as narrativas do livro, essa talvez seja a que mais fortemente confirma a violência nas relações sociais.  O narrador inicia com certa prudência:  “Sei que não atentaram na mulher; nem fosse possível.  Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas”.  A pouca atenção recai na vida em lusco-fusco,  A sinestesia encobre a mulher, nubla o cenário.  A afirmação feita em seguida é dirigida aos habitantes: “No que nem pensaram.  Para quê? A mulher – malandraja, a malacafar, suja de si”.  A abertura do enredo funciona como meio de explicitar os motivos pelos quais a cidade sanciona a vida e a expulsão da Mula-Marmela, da “furibunda de magra”, da velha com faces de jejuadora.  Os ambientes escuros ou pardacentos fazem emergir imagens de pobreza, medo e tristeza.  E, pouco a pouco, as observações do narrador revelam que “assustava-os o seu ser”.

 

Os dois mendigos que formam a família da Marmela são agressivos.  Apenas ela os contêm.  Com a morte deles, sua presença perde a utilidade.  O diz-que-diz que acusa  a miserável de tê-los assassinado confirma que ela precisa partir: “se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou” ou “Só não a acusaram e prenderam porque maior era o alívio de a ver partir”.  Aparentemente, cidade e mendiga associam-se porque as mortes trazem alívio à comunidade, transformando a esposa e mãe em cúmplice.  A tensão ocorre tanto entre os miseráveis como entre estes e a sociedade que se incomoda com os andrajos e os maus modos daqueles mendicantes.  A beleza surpreendente da cena final mostra a desmedida das ações da Mula-Marmela, e o aviltamento da condição humana surge como motor para o desenvolvimento daquele lugar em que a limpeza da cidade coincide com a partida da malandraja.  O tecido social apresentado expõe uma civilização excludente, acusando a cidade e o amor desmedido.

 

Se você chegou comigo até aqui, creio que está interessado nas estórias de Rosa.  E, se quiser, pode adentrar o universo rosiano e deixar-se levar pela narração, como em um passeio em que não é necessária uma rota pré-definida, uma informação anterior, aproximando-se do mineiro passo a passo.  Talvez essa seja uma outra chave.  Então, recomendo enfaticamente que inicie com PRIMEIRAS ESTÓRIAS.  O livro apresenta textos que lembram a crônica, o conto de fada, o caso, o conto tradicional, basta escolher.  E lembrar: a denúncia emerge do cuidado com a linguagem, do contraste entre a hiper-sinestesia, a referencialidade a outros autores e a dura realidade representada na  narração.  Mesmo quando, ao final da estória, esboçamos um sorriso.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Vera Haas (Doutora em Literatura Brasileira pela UFRGS) em 26 de dezembro de 2016.