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Com o Mar por Meio — Uma Amizade em Cartas
Com o Mar por Meio — Uma Amizade em Cartas

COMO SE ESTIVESSEM VIVOS

 

A vitória de Saramago não era só de Saramago. Nem só dele e de Pilar. Nem só dele, de Pilar e dos amigos. Era a vitória da língua portuguesa, e foi isso que Jorge quis expressar.

 

Ler a correspondência de escritores me provoca um sentimento ambíguo. Por um lado, sinto-me inevitavelmente culpada por invadir a privacidade alheia. Por outro, não abri a gaveta de ninguém. As cartas se tornaram públicas ou por desejo de seus autores ou de seus herdeiros. Essa ambiguidade é também o prazer de quem as lê, a sensação de estarmos percorrendo algo muito íntimo, mas também público. Afinal, as cartas são um dos vários gêneros de escrita de um autor.

 

A certa altura, quando já são escritores renomados, passam a escrever suas cartas atendendo também a essa dubiedade. Cartas são sempre cartas e por isso falam de sentimentos, desejos, frustrações. Mas, nesse caso, seus autores sabem que, um dia, elas poderão ser lidas por um destinatário para quem não foram escritas: os leitores de sua obra. Sobretudo, se os autores da correspondência forem, os dois, tão importantes para a literatura quanto Jorge Amado e José Saramago.

 

O pacto é estabelecido na partida. Eles fingem que ninguém, além de Pilar e Zélia, vão ler suas cartas. E nós, assim que abrimos COM O MAR POR MEIO: UMA AMIZADE EM CARTAS (Companhia das Letras), fingimos que não as vamos ler. A leitura de uma correspondência precisa manter o segredo, o silêncio. Para ter graça, seus autores não podem saber que ela está sendo realizada. O livro é público, podemos adquiri-lo em qualquer livraria, mas é como se o lêssemos às escondidas.

 

As cartas, os bilhetes e o faxes trocados por Saramago e Amado vão de 1992 a 1997, quando a saúde de Jorge ficou muito precária e ele foi perdendo a visão. Os anos de amizade não foram tantos, mas a ternura e a admiração que sentiam um pelo outro evidencia-se na correspondência. A amizade entre eles se constrói também nas cartas. Às vezes, até pensamos que eles foram amigos apenas de correspondência, como Kafka foi um amante epistolar, pois são muitos os desencontros físicos, José e Pilar estão felizes com uma viagem à Bahia, mas logo descobrem que Jorge e Zélia não estarão lá nas mesmas datas. Os dois participam de um mês o encontro literário, mas em datas diferentes. Quando um pode participar da reunião da Academia Universal das Culturas, o outro não pode. José convida Jorge inúmeras vezes para conhecer sua casa em Lanzarote (“A Casa”, como ele a denomina), mas não há qualquer menção de que essa visita tenha se concretizado. Numa carta de 1993, José sugere: “Se vocês não têm a agenda demasiado cheia, se sobra nela o tempo de um almoço ou de um jantar, mau seria se não aproveitássemos a ocasião, depois de termos falhado tantas”.

 

A correspondência é feita nos vazios, nos desencontros, na ausência, mas há todo um outro lado ao qual não tenos acesso: os encontros realizados, os jantares, as conversas, os abraços de carne e osso, porque de papel há muitos. Aliás, é engraçado: eles se despedem sempre com um abraço entre os homens e beijos para as mulheres, até que José desabafa o que nós, leitores, já vínhamos pensando antes: “por que raios não damos todos beijos e abraços uns aos outros, sem distinção de sexos?”

 

A presença das mulheres é tal que não seria exagero se, na capa do livro, viessem também os nomes de Zélia e Pilar. É verdade que quase todas as cartas foram escritas e assinadas pelos homens, mas as mulheres estão lá, lendo ao lado deles, ditando, mandando lembranças. Difícil falar em correspondência entre Saramago e Amado. Mais facilmente eu falaria numa correspondência entre Jorge, Zélia, José e Pilar, da mesma forma que Miguel Gonçalves Mendes transformou seu documentário sobre Saramago num filme sobre José e Pilar.

 

Agora, vamos às cartas propriamente ditas, onde lemos sobre literatura, política,, saúde e prêmios literários. Após a participação no Fórum Jovem, José escreve a Jorge: “Quanto a mim, tentei tirar da cabeça daquela mocidade a nefanda ideia moderna de que o escritor só tem de estar comprometido com a sua obra...”. Está aqui um dos pontos em que ambos convergem, o engajamento deles no mundo não apenas enquanto escritores, a ideia de que um escritor não deve pensar apenas no que escreve, mas também na sociedade em que vive.

 

Foram, os dois, vozes ativas na política, e talvez por isso tenham se tornado alvo de rancor de parte da crítica, que acreditava, como “aquela mocidade”, que literatura e política são coisas distintas. Tanto Jorge Amado quanto José Saramago sofreram algum desprezo em seus respectivos países. É por isso que José menciona repetidas vezes a injustiça que envolve a demora da atribuição do prêmio Camões ao amigo. Quando, por fim, Jorge Amado é galardoado com o maior prêmio de língua portuguesa, Saramago não nos deixa esquecer o quão tarde ele chegou.

 

Os prêmios Camões e Nobel são duas constantes nessa correspondência. Aparecem mais do que poderíamos supor. Por um lado, os autores repetem que prêmios não têm importância. Por outro, falam nisso sem parar. Chega a ter graça; Ao após ano, esperam que a Academia sueca se lembre de que Brasil e Portugal fazem parte do mapa mundi. Jorge afirma haver quatro candidatos possíveis, nessa ordem de probabilidade: Saramago, Miguel Torga, João Cabral de Melo Neto e, por último, ele próprio. Torcem tanto um pelo outro que, “por ideia de Zélia e Pilar, firmamos um pacto risonho: se um de nós ganhar, convida o outro a estar presente...”.

 

Em 1994, Jorge diz ter ouvido de uma fonte segura que Lobo Antunes seria o próximo Nobel. Ora, toda a gente sabe da rivalidade entre Saramago e lobo Antunes, que costuma dizer, abertamente, que era ele quem deveria ter ganho o Nobel. Depois de ler a carta de Jorge, José escreve em seu diário, publicado com o título CADERNOS DE LANZAROTE: “Quanto a mim, de Lobo Antunes, só posso dizer isto: é verdade que não o aprecio como escritor, mas o pior de tudo é não poder respeitá-lo como pessoa. Como não há mal que um bem não traga, ficarei eu, se se confirmar o vaticínio do jornalista, com o alívio de não ter de pensar mais no Nobel até o fim da vida”.

 

O vaticínio não foi confirmado, e tanto José quanto Jorge continuaram a pensar no assunto. Primeiro veio um japonês (Kenzaburo Oe), depois um irlandês (Seamus Heaney), mas não tardaria para Saramago representar a língua portuguesa. Quando isso aconteceu, em 1998, eles já não trocavam cartas, pois Jorge, com a visão debilitada, não conseguia escrever. Conta Paloma Amado que ele “passava os dias deitado num cadeirão na sala, com os olhos fechados”. Em situações muito particulares, retomava a energia, conversava, ditava artigos, dava entrevistas, pedia comidas especiais. No dia 8 de outubro de 1998, quando Zélia veio lhe anunciar a boa nova, “Jorge pulou do cadeirão, chamou Paloma, pediu que se sentasse no computador que ele iria ditar, de imediato, uma nota para a imprensa”. Só não pegou o avião para a Escandinávia porque sua frágil saúde não o permitia.

 

A vitória de Saramago não era só de Saramago. Nem só dele e de Pilar. Nem só dele, de Pilar e dos amigos. Era a vitória da língua portuguesa, e foi isso que Jorge quis expressar. Anos antes, no Natal de 1994, José havia escrito a Jorge: “Desta ilha de Lanzarote, com o mar por meio, mas com os braços tão longos que alcançam a Bahia, vos enviamos muito saudar”. Tenho certeza de que os braços de Jorge eram longos o suficiente para chegar à Suécia e apertar a mão do amigo.

 

A aflição de Jorge com a saúde (um ataque cardíaco, a perda da visão) é uma constante nas cartas, como não poderia deixar de ser. “Morre-se sempre demasiado cedo, ainda que seja aos oitenta anos”, afirma Saramago em seus CADERNOS DE LANZAROTE. E, no entanto, não se morre. Num texto sobre o amigo, depois da sua morte, diz José: “Escreverei sobre Jorge Amado como se estivesse vivo”. E mais adiante: “É minha convicção de que (…) os mortos não se retira do mundo, mantêm-se nele desde sempre e para sempre (…) pela forma invisível do que havia sido o seu corpo sólido, transformado, pela morte, em ausência.

 

As cinzas de Jorge Amado foram enterradas debaixo da mangueira a cuja sombra ele gostava de se acolher no Rio Vermelho. As de saramago estão debaixo de uma Oliveira trazida de Azinhaga, sua terra natal, para o campo das Cebolas, em Lisboa. Quem passa com frequência em frente a Fundação Saramago com certeza já viu Pilar sentada no banco o lado da árvore, conversando com José que, assim como Jorge, está vivo. Muito vivo. A correspondência entre os dois está aí para prová-lo.

 

Portanto, ao lerem suas cartas, muito cuidado: eles estão entre nós e sabem muito bem que estamos nos deliciando com suas palavras.

  

Fonte: Revista Valor/Tatiana Salem Levy/doutora em letras e escritora (tatianalevy@gmail.com( em 22/12/2017.