AS METÁFORAS DA LEALDADE
Fabrício Carpinejar fala sobre MINHA ESPOSA TEM A SENHA DO MEU CELULAR, seu novo trabalho, com sessão de autógrafos e bate-papo na próxima terça-feira (7 de maio)
“A traição acontece muito antes da traição porque é toda uma arquitetura do pecado. Até trair você precisa seduzir, trocar telefone, jogar conversa fora no WhatsApp, marcar encontro, mentir que está em um lugar quando está em outro. Ou seja, até aí a pessoa poderia tomar uma decisão contrária, mas não, ela continua.”
Relação a dois é o tema de MINHA ESPOSA TEM A SENHA DO MEU CELULAR, novo livro do autor Fabrício Carpinejar. O título surgiu a partir de um post no Facebook que acabou viralizando: foram mais de 80 mil comentários e quase 130 mil reações diversas, do “grrr” ao “amei”. A partir de questões do dia a dia de seu casamento com a advogada mineira Beatriz Reys, que assina a apresentação da obra, o escritor reflete sobre romantismo, individualidade e traição. No papo a seguir, o colunista de Donna comenta como pequenas atitudes podem sustentar um relacionamento – e como também podem acabar com ele.
O título do livro causou bastante polêmica e até hoje repercute nas redes sociais. Como foi essa história? Você acha que é saudável ter a senha do celular do parceiro?
A senha não é uma prova de amor. É a naturalidade do amor. Ninguém fez nenhuma exigência aqui em casa do tipo “ah, me passa a senha”. Foi completamente espontâneo. Até porque é um celular de família. Quando a gente vai para uma festa, a gente leva um dos celulares apenas, ou se acaba a bateria de um, a gente usa o celular do outro, essas coisas.
Foi acontecendo naturalmente?
Exato. Mas isso não significa que a Beatriz pegue meu celular para ler as conversas do WhatsApp, ou que eu faça isso. Isso nunca aconteceu. A gente tem a senha um do outro em caso de necessidade. Não é coleira, não é focinheira, não é para eu saber tudo da vida dela. Ela tem seus segredos, seus mistérios, sua individualidade. A questão é: a senha do celular não é tão importante assim porque a sua vida não está no seu celular. Eu acho que é uma questão de lealdade. A senha do celular é uma espécie de metáfora da lealdade. Você conta o que pensa, o que deseja, o que quer, para sua esposa ou seu marido, para sua namorada ou namorado? O que costuma acontecer e que, com a falta de tempo, a relação foi a mais atingida. A gente não decide mais com o outro, apenas comunica as nossas decisões.
Tem um trecho que me chamou atenção em que você comenta que até os anos 1980 não tinha mal nenhum em amar e perder a cabeça e largar tudo. E que agora a cabeça é o novo coração. Por que você acha isso? Estamos racionais demais no amor?
Eu acredito que a gente tem uma ideia equivocada de que quando a gente ama, não estamos pensando. Mas a gente pensa. A gente não quer pensar para não se responsabilizar, para não se comprometer. E acabamos difundindo aquele amor, aquela paixão de perder a cabeça, para quando a gente viver ele, poder falar assim “ah mas eu estava fora de mim, fora do meu juízo”. É para justificar, como se fosse uma insanidade, um lapso. A gente não quer escolher. O amor é uma escolha e é uma construção. Não é uma fatalidade, um acidente, uma maldição, não foi algo que surgiu sem que você participasse, não é algo de cima para baixo. O amor é uma decisão diária.
Tem outra parte em que você compara o ato de amar com estudar para um concurso, para um vestibular. Amar não deveria ser fácil? Por que é tão difícil assim?
A gente tem que se preparar para o outro. Se a gente usar o mesmo esforço da conquista no dia a dia, a gente sempre terá uma pessoa apaixonada do nosso lado. Se não, entra no piloto automático. Perde o impacto da curiosidade, da descoberta. Por mais que eu conheça a Beatriz, eu nunca sei tudo da Beatriz. E isso vai me motivando. Sempre tem uma lembrança que eu posso entender melhor, os detalhes dentro dos detalhes. É acompanhar as fases da mulher. Pensamos que intimidade é saber o que a pessoa é, mas intimidade talvez seja estar junto não sabendo bem o que a pessoa é, mas querendo conhecer sempre. Intimidade é querer conhecer sempre, nãoi é já ter conhecido.
Você defende também que a mulher peça o homem em casamento. Por quê?
Meu Deus, mas é muito melhor! Porque a mulher tem o timing, os homens são uns bobalhões, entendeu? O homem sempre pede ou cedo demais, quando a relação ainda nem engatou, e ele parece um psicopata, ou tarde demais, que é quando ele já perdeu a relação. O homem tem uma visão distorcida do casamento como reparação, tipo “como eu não fui legal até agora, eu vou casar para reparar”. O homem vê o casamento como um perdão, como a última instância do perdão.
No livro você faz algumas críticas ao comportamento masculino. Como vê o machismo nas relações atuais dos casais?
Eu acho que o homem é treinado para a pornografia e não para a sensualidade, para o flerte, para o respeito. O erotismo está morrendo. E o homem quer o sexo, ele não quer o amor. O que tem de gente que prega amor não amando é impressionante. São pessoas treinadas para esse sexo rápido. As pessoas não têm mais solidão para oferecer ao outro. Se você tá no Happn e alguém não te aceita, você parte para uma próxima com um deslizar do dedo. O homem não aceita mais um fora, e é esse o machismo. Acabou o “não”, acabou a frustração, a fossa. Parece que a outra pessoa tem obrigação de te amar” Aí vem a violência doméstica, o feminicídio. Porque o homem não consegue experimentar a frustração, a depressão, a esperança, a fé. É só o pertencimento, a possessividade.
Outra coisa que você fala que é meio polêmica é sobre traição. No livro você escreve que ela já existe antes mesmo de ser um fato consumado. O pensamento é uma infidelidade. Como isso acontece?
A traição acontece muito antes da traição porque é toda uma arquitetura do pecado. Até trair você precisa seduzir, trocar telefone, jogar conversa fora no WhatsApp, marcar encontro, mentir que está em um lugar quando na verdade está em outro. Ou seja, até aí a pessoa poderia tomar uma decisão contrária, mas não, ela continua. Porque ela acredita nessa impunidade do amor. Por isso o amor não pode ser fácil, você tem que pensar no percurso. Nossa, eu nunca traí a Beatriz e nunca vou trair porque chega a me doer a possibilidade de magoá-la. O homem usa a infidelidade como uma maneira de terminar a relação. Ele não tem coragem de terminar a relação, aí ele chama uma outra mulher para terminar no lugar dele. Ele já se separa estando com outra pessoa para que essa outra pessoa enfrente a situação. Aí falta o coleguismo feminino, entendeu? Não brigue com a amante, foi ele quem fez o estrago, não é? E também não coloque a culpa em si mesma. Nunca. Jamais! A culpa é dele de qualquer jeito.
É uma tendência feminina pegar a culpa para si, não acha?
É, e isso também ajuda o machismo. Amar pelos dois, sofrer pelos dois, pedir desculpa pelos dois. Eu gosto muito de uma visão do amor que é: o amor não é uma gangorra, um em cima e outro embaixo. O amor é balanço, cada um no seu território, no seu espaço. Quando o outro precisa, você empurra as costas, mas volta ao seu balanço. Cada um precisa cuidar do seu impulso. E nunca, em nenhum momento, você pode substituir o outro, constranger o outro. Você precisa fortalecer o outro para que ele se balance.
Você acha que esse é um comportamento do relacionamento moderno? Porque você parece meio saudosista, meio amante à moda antiga.
Tenho sentimentos misturados, mas isso que estou dizendo é uma índole do novo tempo. A gangorra é uma imagem da desigualdade e da injustiça. O balanço, não. O balanço é uma imagem da igualdade e da justiça. E na medida em que eu coloco a gravidade da infidelidade, eu coloco em ambos os lados, entendeu? Só que o homem sempre teve orgulho de se vangloriar da infidelidade e também tem aquela concepção de que a natureza é poligâmica, e não é!
Eu ia te perguntar sobre isso. Muitas pessoas hoje comentam que a monogamia é um conceito ultrapassado, que o futuro é mais aberto para essas novas configurações de amor. O que você pensa a respeito?
Eu acho maravilhosa uma relação aberta, mas quando tu vai ver ninguém mais está dentro dessa relação. E existe uma questão da relação aberta que eu acho perigosa, que a amizade e o amor ficam no mesmo saco. Existe um livre desejar, mas não um livre amar. Você está desejando, mas pode ser momentâneo. É o sexo pelo sexo, não é o sexo por amor. Aí não existe ciúme, não existe possessividade, não existe absolutamente nada. Até que você se apaixona. Eu acho que a relação aberta não será o matrimônio do futuro, não. O que eu percebo hoje é que há um desgaste do amor. Os jovens preferem muito mais amizade do que romance.
Pois é, e esse mito do amor romântico já não é ultrapassado, antigo?
Ah, nesse sentido eu sou ultrapassado. O amor não faz uma relação feliz, a gente depende de outros sentimentos, de outras cartas. A esperança, por exemplo. A gente não sabe mais o que é esperar. Então a gente não deseja mais o outro, porque a gente já tem o outro. A gente não espera uma semana para se encontrar com alguém, não ficamos pensando que roupa vestir, que lugar a gente vai. Não nos preparamos para algum momento. Isso eu acho triste, acho que deveria voltar a acontecer. Não temos mais a véspera de nada. Na véspera a pessoa já mostra se é chata, fria, indiferente, insensível. Por isso é um romantismo necessário. O que tem de gente entrando em relações sem viver a véspera. Eu acho preventivo e terapêutico para evitar relações suicidas.
Fonte: Revista Donna ZH/Rafaella Fraga em 05/05/2019