MITO DESCONSTRUÍDO
“José Bonifácio é uma figura pouco conhecida. Fala-se muito e conhece-se pouco. A trajetória dele foi morna (…) Não era esse luminar que a historiografia dos anos 1920 e 1930 procurava ecoar.”
Em AS VIDAS DE JOSÉ BONIFÁCIO (Estação Brasil, 328 págs.), a escritora e historiadora Mary Del Priore, de 66 anos, desconstrói o mito de “Herói da Pátria” e “Patriarca da Independência” associado ao político, cientista, poeta e advogado paulista que foi ministro de D. Pedro I e idealizador das primeiras instituições políticas do País. Com mais de 40 livros no currículo, Mary se debruçou sobre o passado de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) e traz novas visões para ideias cristalizadas por historiadores desde o fim dos anos 1920 e início dos anos 1930, após o centenário da Independência.
AS VIDAS DE JOSÉ BONIFÁCIO desconstrói o mito do heroico “Patriarca da Independência”, do homem de ciências, do grande mentor intelectual de D. Pedro I…
Primeiro, desconstrução não é destruição. Nos últimos 10 anos, as biografias procuram não mais dar vitaminas, nem animar heróis. Elas buscam apontar homens de carne e osso, pessoas com problemas e dificuldades. E mostrar que personagens e suas histórias são modelados por seu tempo, e não só por características pessoais – ou fica muito ao sabor da subjetividade.
De que forma a senhora acha que o tempo moldou a figura de José Bonifácio?
Ele teve uma existência entre a Europa e o Brasil. Essa característica permite enxergar o Brasil de longe. Dá uma dimensão de como o brasileiro é visto na Europa. Em troca de olhares me parece riquíssima. Quando ele sai de Santos, aos 14 anos, deixa uma colônia adormecida e sonolenta para chegar a uma Europa em fogo com a Revolução Francesa, as Guerras Napoleônicas… Quando ele faz o trajeto inverso, 30 anos depois, deixa uma Europa relativamente estabilizada e vai encontrar um Brasil em fogo.
Como define a trajetória dele?
Eu diria que José Bonifácio é uma figura pouco conhecida. Fala-se muito e conhece-se pouco. A trajetória dele foi morna. Longe de integrar essa constelação de estrelas, de fazer parte da Royal Society ou da Sociedade Filomática, que eram o máximo na área de ciências à época, ele passa muito ao largo de tudo. Vários biógrafos diziam que ele falava muitas línguas, mas, com exceção do inglês, era raso em outras. Enfim, não era esse luminar que a historiografia dos anos 1930 e 1930 procurava ecoar.
De onde vem, então, a ideia do “Patriarca da Independência”?
No livro, exploro bastante o tema da construção da autoimagem. Em 1823, José Bonifácio funda um jornal – O Tamoyo – e se autoentrevista. Ele se intitula o “Velho do Rocio”, e as perguntas todas são feitas no sentido de explicar por que foi destituído do ministério do Reino e dos Negócios Estrangeiros por D. Pedro I mesmo tendo lutado tanto pela Independência. Graças ao Tamoyo e a outro jornal, ele consegue construir essa imagem do “Patriarca da Independência”, que é retomada em 1922, no centenário da Independência, e vai ser ratificada por historiadores do período. Todo mundo embarca no patriarca, mas quem inventa o título é ele mesmo, José Bonifácio.
O livro deixa transparecer, também, um homem muito ressentido.
Ele tem um ressentimento, um azedume, um ódio de tudo que aconteceu, das escolhas que fez ao longo da vida. No fim, aquele homem político naõ consegue mais dialogar com seu tempo porque suas ideias estão ultrapassadas. É o que acontece quando ele tenta fazer a restauração de D. pedro I, nos anos 1830, e vê que está completamente fora da realidade. Esse novo Portugal, como chamavam o Brasil, para onde ele vem, é um Portugal de gente moça, jovem. Os novos políticos são homens moços, a quem ele não tem mais nada a dizer. Não é mais reconhecido na rua, não pe aclamado.
Bonifácio tinha vários irmãos, entre eles, Antônio Carlos e Martim Francisco, também retratados no livro. Como era a família?
José Bonifácio era autoritário, resolvia tudo na paulada. Antônio Carlos também era agressivo (foi acusado de matar um desafeto a facadas), Martim Francisco era mais maquiavélico. Ou seja, uma verdadeira matilha. Eles agiam como lobos. Trabalhavam juntos o tempo todo para manter o poder. A imprensa, em geral, vivia batendo neles e chamava José Bonifácio de “Paxá Bonifácio”. Há um governador de São Paulo que os acusa de delinquentes, porque são arruaceiros e truculentos. O (político independentista) Cipriano Barata acusa sistematicamete os três irmãos de serem ditatoriais, piores do que o famigerado Marquês de Pombal.
Se fosse hoje, quem poderia ser José Bonifácio?
É difícil comparar com um personagem hodierno. Até porque, a julgar pela qualificação intelectual dos nossos políticos, José Bonifácio, pelo menos, estudou na Universidade de Coimbra, viajou, não era monoglota. O paralelo que cabe é com o País. Na época, o Brasil era dividido em províncias, com agendas muito particulares. Cada lugar desses, tal como hoje, tinha uma elite política e econômica, com seus próprios planos. Eis aí o Congresso que não consegue votar nada, porque no Acre querem uma coisa e no Mato Grosso do Sul, querem outra. Essas divergências internas sempre foram uma característica do Brasil.
E a que a senhora vai se dedicar depois de Bonifácio?
Estou sempre trabalhando. Agora, pesquiso para escrever um livro sobre Dona Maria I, a rainha. Todo mundo achava que ela era louca, mas de louca ela não tinha nada.
Fonte: Jornal do Comércio/Panorama em 02/04/2019.