DE ONDE VEM O GAÚCHO
Livro que será lançado na terça-feira contesta forma como a história oficial aborda as origens históricas do tipo sulista.
Livro: A origem do Gaúcho e Outros Ensaios
De Fernando Cacciatore, com prefácio de Eduardo Bueno. Ed. Buenas Ideias, 128 páginas.
Leitura apropriada para o momento: A ORIGEM DO GAÚCHO e OUTROS ENSAIOS, de Fernando Cacciatore, livro que será lançado terça-feira (última terça) em Porto Alegre. Reunindo nove artigos em duas seções – uma dedicada ao gaúcho, sua história e Literatura, outra de escopo mais aberto –, o livro tem o inegável mérito de ser bem escrito, deixando-se ler de modo agradável e sugestivo, que torna leve a notável erudição do autor, diplomata aposentado, ensaísta dedicado à cultura e, não menos, um irresignado com as interpretações correntes acerca justamente do mundo sul-rio-grandense.
Caccioatore mergulhou no universo dos livros dedicados ao gaúcho, de autores argentinos, uruguaios e brasileiros, com desassombro e um par de teses na cabeça. Desfilam ante o leitor comentários envolvendo clássicos como Leopoldo Lugones, Emílio Coní e Fernando Assunção, ao lado de guias locais como Carlos Reverbel, Augusto Meyer e Moysés Vellinho. Dessa visitação, vai recolhendo dados e interpretações para seus ensaios.
Chamam atenção algumas insistências, que revelam as teses do autor. Uma delas é o ataque ao que considera uma injustificável submissão de “obras escritas no próprio Rio Grande do Sul” a uma visão argentina sobre o gaúcho e a identidade gaúcha (p.42). Não exita o autor em afirmar, mais de uma vez, que os argentinos falseiam (sic) a história, em favor de uma pretensão algo imperial do vizinho país, que teria, desde Rosas, mantido sua vontade de estabelecer um mando que incluiria toda a parte sul do Brasil.
Lamentavelmente, deixa de nomear as obras que acusa de haverem sucumbido a tal submissão.
No ensaio mais extenso e de maior alcance, A PALAVRA “GAÚCHO”, SUA HISTÓRIA E ORIGEM, Cacciatore expõe tal visada de modo mais completo, defendendo algo que reponta noutras passagens – a ideia de que os argentinos se apropriaram do termo “gaúcho”, que não teria nascido para designar os cavaleiros, camponeses e paisanos daquele país; ao contrário, teria brotado no atual Uruguai e em parte no Rio Grande do Sul. Na Argentina, teria havido uma explícita discriminação das elites europeizadas contra o homem simples do campo, o mestiço, numa palavra, o gaúcho, tal como o nomeamos hoje em dia. Em contrapartida, no Uruguai houve a notória aliança de Artigas com gaúchos simples, e no Rio Grande do Sul, segundo o ensaísta, o regime de distribuição de terra na fronteira Oeste teria impedido o surgimento de caudilhos ao modo argentino. (Mas há espaço para um discreto elogio ao coronel João Francisco, a Hiena do Cati, que teria praticamente livrado a fronteira “daqueles malfeitores”, os gaúchos nômades e livres.)
Em certo momento, defende uma tese improvável: “O prestígio do gaúcho uruguaio fez com que os camponeses e cavalarianos argentinos nos pampas locais adotassem seus trajes, usos e vocabulários” (p.42), para o que teria contribuído decisivamente série de poemas gauchescos impressos em folhetos populares, como foi de fato o caso do Martín Fierro. A ser verdade, teríamos um caso raríssimo de mudança de hábitos cotidianos, por parte de gente iletrada, em função de uma convicção ideológica.
Tais teses se aproximam, de modo indireto, mas forte, das posições chamadas em certa época de “lusitanistas”, defendidas por Vellinho, Meyer, Guilhermino César e outros hoje esquecidos, que nos anos 1950 pelearam pelos jornais e nas posições de prestígio intelectual (a antiga Globo) e político (cargos na máquina pública) em torno da figura de Sepé Tiaraju, que esses intelectuais não aceitavam fosse homenageado, por ter sido um aliado dos jesuítas espanhóis, controladores das Missões. Do outro lado estavam figuras como Manoelito de Ornellas, Walter Spalding e os jovens criadores do primeiro CTG.
Cacciatore mostra ainda outros traços de interesse no livro. Por um lado, é visível sua defesa da importância de imperatriz Leopoldina, tida por ele como uma figura esclarecida e iluminista, responsável por uma primeira valorização das coisas locais brasileiras. Assim também o próprio Império brasileiro é apresentado como tendo tido méritos importantes, ficando ao mesmo tempo livre de críticas.
A mesma saudável disposição para a discussão aparece na crítica à força local de Gilberto Freyre, assim como na inconformidade com a hegemonia da visada modernista sobre a arte brasileira. Um prato cheio para o debate.
Fonte: ZeroHora/Caderno DOC/Luís Augusto Fischer (Escritor, professor de Literatura da UFRGS) em 17/09;2017.