Translate this Page




ONLINE
21





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


O Bazar da Galantina
O Bazar da Galantina

O BAZAR DA GALANTINA

 

UM TRECHO DE “ESTAÇÃO PERDIDO”

 

CHINA MIÉVILLE – TRADUÇÃO JOSÉ BALTAZAR PEREIRA JÚNIOR E FÁBIO FERNANDES .

 

SOBRE O TEXTO:  Este fragmento faz parte do primeiro tomo da trilogia de BAS-LAG – planeta em que diferentes espécies com habilidades especiais convivem sob rígida hierarquia.  No romance de Miéville, um dos principais nomes da fantasia hoje, o cientista Isaac divide seu tempo entre uma pesquisa pouco ortodoxa e sua paixão secreta por Lin.  O livro sai pela Boitempo em julho.

 

Uma janela se escancarou muito acima da feira.  Uma cesta saiu voando de lá, traçando um arco em direção à multidão distraída.  A cesta sofreu um espasmo em pleno ar, depois rodopiou e continuou sua trajetória rumo ao solo, só que num ritmo mais lento, irregular.  Dançando precariamente durante a descida, sua trama de metal se prendeu e se arrastou pela áspera cobertura do edifício.  Roçou a parede, fazendo com que um pouco da tinta e do pó de concreto caísse no chão antes dela.  O sol reluzia por entre nuvens assimétricas com uma luz cinza e brilhante.  Embaixo da cesta, as barracas e os barris formavam um quadro que lembrava um derramamento descuidado.  A cidade fedia.  Mas era dia de mercado no Buraco da Galantina, e o cheiro pungente de estrume e comida podre que pairava sobre Nova Crobuzon era, naquelas ruas, naquele horário, aprimorado por pápricas e tomates frescos, óleo fervente e canela, carne seca, banana e cebola.

 

As barracas de comida se estendiam ao longo da bagunça que era a Rua Shadrach.  Livros, manuscritos e imagens enchiam a Passagem Selchit, uma avenida de figueiras desordenadas com rachaduras no concreto ao leste.  Ao sul, produtos de cerâmica se espalhavam estrada abaixo até a Quartelaria; peças de motor a oeste; brinquedos descendo por um lado da rua; roupas entre outras duas; e incontáveis artigos preenchendo todos os becos.  As fileiras de itens convergiam tortas para o Buraco da galantina como eixos de uma roda quebrada.

 

No Buraco propriamente dito, todas as distinções se acabavam.  À sombra de paredes velhas e torres instáveis havia uma pilha de engrenagens, uma mesa bamba com porcelana quebrada e ornamentos toscos de argila, uma caixa de livros científicos mofando.  Antiguidades, sexo, pó para matar pulgas.  Por entre as barracas caminhavam constructos a vapor.  Mendigos discutiam nas entranhas de prédios abandonados.  Membros de estranhas raças compravam coisas peculiares.  O Bazar da Galantina, uma bagunça estrondosa de artigos, sujeira e conferentes contando carga.  Reinava a lei mercantil: o comprador que se cuidasse.

 

O feirante que estava debaixo da cesta em queda livre olhou para o alto, para a luz do sol que batia direto em seus olhos e para a chuva de partículas de tijolo.  Limpou os olhos.  Pegou o objeto esfarrapado no ar, acima de sua cabeça, puxando a corda que o segurava até ela afrouxar em sua mão.  Dentro da cesta havia um siclo de bronze e um bilhete escrito em um itálico ornamentado, cuidadoso.  O vendedor de alimentos coçava o nariz enquanto lia o papel.  Começou a mexer nas pilhas de produtos à sua frente, colocou ovos, frutas e tubérculos dentro do recipiente, sempre conferindo a lista.  Parou e voltou a ler um dos itens, então deu um sorriso lascivo e cortou uma fatia de carne de porco.  Quando acabou, enfiou o siclo no bolso e procurou o troco, hesitando ao calcular o custo de entrega e, por fim, depositando quatro tostões ao lado da comida.

 

Limpou as mãos nas calças e refletiu por um minuto, depois rabiscou algo na lista com um toco de carvão e jogou o bilhete, junto com as moedas.  Puxou a corda três vezes e a cesta iniciou uma jornada balouçante pelo ar.  Subiu acima dos telhados mais baixos dos prédios ao redor, alavancada pelo barulho.  Deu um susto nas gralhas empoleiradas no andar abandonado e inscreveu na parede mais uma trilha, no meio de tantas, antes de voltar a desaparecer para dentro da janela da qual havia emergido.

 

Isaac Dan der Grimnebulin havia acabado de perceber que estava sonhando.  Ficara terrivelmente incomodado ao se encontrar mais uma vez trabalhando na universidade, desfilando em frente a um enorme quadro-negro coberto por representações vagas de alavancas, forças e tensões.  Introdução à ciência dos materiais.  Isaac já estava havia algum tempo encarando a classe ansioso quando aquele desgraçado ensebado do Vermishank enfiara a cabeça para dentro da sala.

- Não consigo dar aula – Isaac sussurrou alto. – A feira está b arulhenta demais – fez um gesto em direção à janela.

- Tudo bem – o tom de Vermishank era odioso e tranquilizador. – Está na hora do café da manhã – disse. Isso vai distrair sua mente do barulho.

 

E, ao ouvir tamanho absurdo, Isaac acordou com imenso alívio.  Os palavrões bem gritados do bazar e o cheiro de comida penetraram o dia junto com ele.

 

Ficou deitado, completamente esparramado na cama, sem abrir os olhos.  Ouviu Lin caminhar pelo quarto e sentiu o gemido leve das tábuas do piso.  O sótão estava cheio de uma fumaça pungente.  Isaac salivou.

 

Lin bateu palmas duas vezes.  Ela sabia quando Isaac acordava.  Provavelmente porque fechava a boca, pensou ele, e riu sem abrir os olhos.

 

Fonte:  Folha de S.Paulo/Caderno Ilustríssima em 15 de maio de 2016.