FILÓSOFO DAS SINGULARIDADES – WALTER BENJAMIN
Professor universitário analisa o pensamento do filósofo alemão com as suas principais características
Primogênito de próspera família burguesa, Walter Benjamin nasceu em Berlim, em 15 de julho de 1892. Doutorou-se com tese sobre a crítica de arte do romantismo alemão, em 1919. Atingido pela crise econômica que tomou conta de seu país ao final da I Guerra Mundial, viu mais tarde fracassar sua tentativa de lecionar na Universidade. Viveu a partir de então em condições muito adversas, às vezes como andarilho, colaborando para jornais, revistas e emissoras de rádio, de auxílios dados por fundações e institutos de pesquisas. De origem judaica, temeu voltar à Alemanha após a ascensão de Hitler (1933), acabando por fixar residência em Paris. Suicidou-se em 1940, durante fuga para os Estados Unidos, na fronteira da Espanha com a França, receoso de ser entregue ao Regime de Vicky e, através deste, aos nazistas, que contra ele haviam expedido ordem de prisão.
Benjamin é mais conhecido pelos escritos de sua última fase, quando os acontecimentos vividos por sua geração levaram os intelectuais europeus a ter de escolher entre fascismo e comunismo. De ascendência judaica, dissemos, ele abraçou o segundo, até como meio de luta e sobrevivência, sem todavia sucumbir ao maquiavelismo stalinista que sobre o movimento se impusera. Benjamin assimilou o marxismo fazendo convergir sua simpatia individual pelas vanguardas estéticas de seu tempo, o surrealismo e o teatro épico à frente, com as teses mais originais que propusera aquela filosofia. Ainda que anacronicamente, ele endossou o juízo marxiano de que o comunismo não é uma ideia ou doutrina, mas o movimento real, prático, que tende, embora não necessariamente, a superar a sociedade capitalista a partir das mudanças nas relações entre os seres humanos impostas pelas circunstâncias objetivamente existentes em dado estágio de seu desenvolvimento.
Como identificar intelectualmente o ofício do autor ainda hoje constitui desafio, visto ser demasia chamá-lo de crítico cultural, e insuficiente caracterizá-lo como teórico da literatura. Benjamin nos legou obra sem dúvida vasta, mas, ao mesmo tempo, tematicamente muito fragmentada. Ensaísta, escreveu sobre livros, arte, teatro, fotografia, guerra, poesia, linguagem e, obviamente, filosofia, sem deixar de ser cronista, interessado por temas que iam do haxixe aos brinquedos infantis, dos objetos postos em vitrines às ruas de Berlim. Onde quer que o olhar de suas palavras caísse e, em princípio, nada lhe estava interdito, tudo se tornava radioativo e potencialmente emancipado de convenções, como disse seu amigo e colega Theodor Adorno.
Para nós, pode ser considerado filósofo, conquanto se entenda a mudança de significado no termo em andamento durante seu tempo. Marco da abertura de uma nova etapa na história do pensamento, em meio a qual se deve situar Benjamin, Nietzsche se revela à análise criador de muitas filosofias. Benjamin foi filósofo sem ter explícita e sistematicamente elaborado nenhuma. Apesar da peculiaridade dos temas, ao marxismo que lhe marca a fase final não se acha proposta uma nova teoria. No toante ao período anterior, algo assim sequer é almejado, é de toda outra coisa, muito mais original, que se trata.
Ainda que problematicamente e de modo necessariamente relativo, o principal está na exposição de uma espécie de estética da memória que, estendendo sua sombra pela fase marxista, inclusive marcaria seu fracassado projeto de escrever a pré-história do século 20, através da análise da vida cotidiana de sua suposta capital, Pari, na época do poeta e escritor Charles Baudelaire (1821-1867).
Viver em sociedade, em geral, implica querer ser igual aos de nossa classe, senão de todo mundo. No máximo, mostrar-se melhor na obtenção de o que todos desejam. Por baixo, gritar palavras de ordem genéricas como se fossem as de nossa autoria mais íntima. Benjamin encarnou e deu voz em seus escritos de juventude à outra tendência, mais rara, através da qual tentou mostrar o sentido ou descobrir a plenitude, outro nome da felicidade, nos momentos imediatos e detalhes aparentemente insignificantes do cotidiano.
Influenciado pela obra de Marcel Proust, o filósofo pretendeu evidenciar como, em vez da interioridade, seria por meio das coisas menores e situações específicas que se revela, se vive e se redime nossa singularidade. Isto é, eventualmente escapamos do jugo cego e anestesiante da tradição mas, também, da massificação niveladora do modo de vida moderno – que ele, talvez endossando demais, paradoxalmente acabou considerando parâmetro de avaliação da existência nos escritos do último período.
Quando imperava a religião, às vezes se abria um jardim mágico no qual podíamos encontrar refúgio para as adversidades da existência, dissolvendo ritual e coletivamente nossa consciência na fantasia transcendente do todo-poderoso. Surgido o capitalismo moderno, este poderio alienado, fantasmagoricamente, passou a ser fixar nas imagens oriundas do mercado de bens de consumo, dos centros comerciais, dos empreendimentos ciclópicos, dos novos meios de comunicação, etc.
Convertendo-se ao marxismo, Benjamin desejou crer que o próprio progresso dos meios técnicos responsáveis por tudo isso, todavia, acabaria com elas, a partir do momento em que as massas trabalhadoras, sequiosas por igualdade e justiça social, daqueles meios se apropriassem. Cabe notar, porém, que, antes disso, soube o filósofo sugerir que, mesmo numa condição pautada por aquele progresso, sempre restaria aberta, para alguns, a janela cotidiana representada pela vivência absolutamente singular, renovável e redentora de um sorriso, de um sapato, de um animal, de uma paisagem, de uma esquina, etc. Que se prende esteticamente à memória.
Quer nele, quer em Proust, consciência que importa foi sempre a que, capaz de registrar as variações da sensibilidade diante dos fatos e das coisas, se abre ao retorno e, assim, à atualização do passado em meio ao vivenciado no agora. Noutros termos, valioso na vida é o próximo e imediato com que se ativa e se trabalha a imagem de o que foi significativo no passado. Avesso à psicologia subjetivista, encantada com os supostos mistérios do eu, Benjamin igualmente se opôs ao fetichismo objetivo da mercadoria, onde o valor é fugaz e a tendência é tudo se tornar descartável – ciente de que se exaurira a era das grandes narrativas comunitárias.
Característica desse pensador foi rejeitar o trabalho confinado no conceito ou restrito à reflexão, evitar a procura de explicação e o desenvolvimento sistemático dos tópicos em análise. Em meio à época que põe fim à continuidade da experiência, Benjamin preferia o apontamento à narrativa dos fatos, optou por falar de imagem em vez de discurso. Desejo seu que não se realizou era apresentar obra feita só de citações, em que a figura do autor se diluiria na do editor, na qual a interpretação dos fatos deveria dar lugar à simples montagem de seus indícios.
Banalizará Benjamin quem, levado pela aparência, o tomar por introspectivo ou simples nostálgico, posteriormente amadurecido pelo marxismo. Mal ou bem e desde o início, ele, talvez místico, foi um materialista que desejou ver nas coisas mesmas, especialmente as mais próximas, os únicos sinais de valor de o que concebemos idealmente. Benjamin não saiu à procura do tempo perdido, muito menos esperou sua volta. Acreditando no poder redentor do dado imediato, em vez disso tendeu a criar uma estética, de acordo com a qual, sempre que convergem, vivência e memória eventualmente ensejam as maiores e mais fortes sínteses existenciais ao alcance do ser humano.
Fonte: Correio do Povo/CS/Francisco Rüdiger/Professor das Universidades Católica (PUCRS) e Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 04/05/2019