HEIDEGGER E A PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA
PSICANALISTA ABORDA AS POSSIBILIDADES DE PENSAR A TEORIA E A CLÍNICA PSICANALÍTICA A PARTIR DE SUA OBRA.
A aventura intelectual de um pós-doutorado em Paris VII, sob orientação de Elisabeth Roudinesco, levou-me ao ambicioso projeto de produzir uma trilogia que tem por título A PSICANÁLISE E A CRÍTICA FILOSÓFICA e constitui uma tentativa de empreender um mise a jour dos desenvolvimentos psicanalíticos que se processaram a partir da segunda metade do século XX, sob a importante influência dos filósofos que construíram o pensar desse século, cujo nascimento coincide com a morte de Friedrich Nietzsche. Nietzsche expira logo após haver decisivamente inspirado os desdobramentos do pensar que sucederiam seu desaparecimento.
“Heidegger ou as Vicissitudes da Destruição” (Ed. AGE, 2016), volume que a in augura, é o primeiro passo no sentido de dar conta do desdobramento e expansão das possibilidades de pensar a teoria e a clínica psicanalíticas numa perspectiva que avança além do freudismo estrito senso através do diálogo com aquele que oi o grande artífice, aquele que estabeleceu o campo de imanência – deleuzianamente falando – de onde se origina o pensar filosófico comumente descrito como contemporâneo. Este destaca uma tríade bastante conhecida: Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault. Esta afirmação constitui um paradoxo, senão uma enunciação em si contraditória, porque já Nietzsche estabelecera, e c om propriedade, que o verdadeiro filósofo será sempre extemporâneo, visto que está sempre além e em oposição ao seu tempo.
A interlocução psicanálise/filosofia nunca foi um propósito consciente ou confesso de Freud, que atemorizava-se com o fascínio que a filosofia lhe produzira desde cedo, desde a época em que assistia, ainda adolescente, aos seminários de Franz Brentano. Na mesma época Edmund Husserl, o pai da fenomenologia, estudou também com Brentano, no entanto, Freud e Husserl, que tinham quase a mesma idade e viveram quase o mesmo tempo, jamais se encontraram. Mas Freud leu Schopenhauser, que o inquietava mais que Kant, e leu, com mãos trêmulas e coração palpitante, alguns livros ou trechos de livros de Nietzsche, que o assombrava. Freud sonhava ser um cientista. Nietzsche escarnecia a ciência, do método e da metafísica.
Se esta intertextualidade e interdiscursividade não foram exploradas por Freud, que se mantinha em posição ambivalente com relação aos filósofos e à filosofia, relação que basculhava entre o fascínio e o desprezo, ela enriqueceu, quase que involuntariamente, a obra de Donald Winnicott – que se tornou um autor especialmente interessante para os filósofos – e atravessou a construção do pensamento de Jacques Lacan, que tinha a explícita intenção de fundamentar seu pensamento, argumentativa e discursivamente, numa rede diagonal estabelecida pelo entrelaçamento de diversas disciplinas. Lacan e Winnicott são os dois mais importantes desconstrutores do pensamento de Freud, e por isso são os grandes responsáveis pela manutenção do seu vigor ao longo dos últimos 120 anos. Sem deixar de ser a mesma, a psicanálise hoje é “outra”. Sempre há o outro no mesmo e o mesmo no outro, diria Deleuze.
Mas, e por que Heidegger? E por que Heidegger primeiramente? E por que Heidegger, que não simpatizava com Freud? E por que Heidegger que não gostava nadica da psicanálise?
Primeiramente, porque ele foi o mais importante filósofo do século XX. Porque tirou o indivíduo humano fora do eixo, do centro, tanto quanto Freud o fez. Porque não se preocupava com o mais além, com o transcendental no sentido da metafísica medieval e moderna, com Deus ou o númeno, mas com o mais aqui do ser do homem, que se oculta, o essencial que se obscurece por efeito da errância, do extravio do ser do homem no mundo saturado de objetos atraentes – os gadgets de cada época – o mundo do disse-me-disse (das Man), dos falatórios e das escrivinhações, das imagens cada vez mais coloridas, tridimensionais, hologramáticas, virtuais, fractais, fascinantes, excitantes e igualmente alienantes que nos acossam por todo lado e nos afastam de qualquer tentativa íntima de sondagem do sentido do nosso ser-aí nesse mundo-aí.
O pensamento de Heidegger, como o de Freud, e depois o de Lacan, disseminou-se de tal forma na cultura e no discurso cotidiano contemporâneo que hoje não prescindimos de servir-nos de conceitos originados de suas obras para formular as sentenças mais prosaicas que compõem os circuitos de comunicação, de indicação, de referências através das quais expressamos as nossas vontades, necessidades e desejos. Embora conhecesse praticamente a obra de Freud e a desprezasse pela sua metodologia, que recorria à noção de causalidade da ciência natural e adotava o procedimento do cientista que procura a causa A que determina o efeito B, Heidegger soube distinguir o pensar e o proceder do cientista daquilo que acreditava devesse ser o pensar e o proceder do filósofo e do psicoterapeuta/psicanalista. “A ciência – dizia Heidegger – não pensa”. Dito de outra forma, a ciência pensa o homem como um complexo sistema de órgãos que possuem certa forma e funcionam de determinada maneira. Nesse sentido, pode pensar o homem, mas não pensa o humano, não pensa o ser do homem, o ser-aí (Dasein). Em um de seus importantes livros que se intitula O QUE SIGNIFICA PENSAR?, ele estabelece que a questão central de seu livro é a de poder pensar que ainda não conseguimos começar a pensar, problematizar a forma do pensamento que operamos até então. Esta crítica, que toma como ressort a empreendida por Nietzsche ao platonismo, visará ao cartesismo. Heidegger, como Lacan, criticava o egologismo que dominara o pensamento de Descartes, de Kant, de Hegel e de Freud, a quem o filósofo alemão considerava também um cartesiano. O ser, para Heidegger, como para Winnicott, precede o pensar, portanto a existência humana não pode legitimar-se pelo pensamento, pelo cogito: Penso, logo sou. O ser-aí, ser jogado ao mundo, é sem saber o que é. Ele necessitara formular a pergunta sobre o sentido do ente que inicialmente substancializa. Ente que se distingue dos demais entes mundanos justamente pela capacidade que possui de perguntar-se, de indagar a si mesmo (e aos outros, nos quais irá inicialmente alienar-se, como mostrou Lacan) na sanha de instaurar um sentido em sua própria existência. Lacan subverte o cogito renunciando-o: Sou onde não penso, logo, onde penso não sou,
O ser do homem é desde o começo ser e sentido em construção no tempo. Partindo da sua nadidade original, fonte da angústia, a mais urgente e abissal que eventualmente experimentará, desnudo em meio ao mundo onde se encontra no mais absoluto desamparo, ele deverá fazer lugar. Produzir-se. Efetuar-se. Apropriar-se. De si e do mundo. Ele necessita acontecer, apropriativamente, como nos dirá Heidegger servindo-se do conceito de Ereignis.
Embora não conhecesse Freud profundamente, mas antipatizasse com ele e com a sua invenção (e não se feche os olhos para o fato de que se tratava de um judeu que undara uma ciência judaica, como a psicanálise era referida no início dos anos 30, quando o nazismo, do qual Heidegger, como muitos intelectuais alemães, foi um entusiasta nos primeiros tempos, fermentava), Heidegger possibilitou que o estudo de sua obra filosófica levasse o psicanalista a gradualmente abandonar o modelo arqueológico, o do escavador em busca de objetos (significados) valiosos que se encontrariam soterrados (recalcados) para trazê-los à luz do sol, esclarecendo sua forma e função; a abandonar também o modelo detetivesco, que colocava o analista na obrigação de desvendar enigmas ou esclarecer a trama dos crimes que seu paciente imaginariamente praticara e cujos remorsos e castigos (não apenas imaginários, mas reais) o faziam adoecer mais ou menos gravemente; e por fim, a abandonar ainda o modelo sacerdotal, o do absolvidor dos pecados, libertador da culpa parricida original e orientador espiritual para uma nova vida, o que se denominava impropriamente de “cura psicanalítica”.
Heidegger, como Sartre, como Deleuze, foram filósofos pretensamente antipsicanalíticos (seja por criticarem o método, o insconsciente ou o Édipo), mas sua crítica, que hoje aproxima-se muito da que nós empreendemos com o propósito de manter viva e ativa a análise, possibilitou que o pensar psicanalítico avançasse muito além dos objetivos de expansão dessa disciplina (que não está mais hoje preocupada em ser ciência, mas que reserva-se a prerrogativa de pensar o homem e o humano da forma mais sutil, inteligente e essencial que existe, sem pretender adestra-lo como se adestram os cães, os pombos, ou os ratos) que os seguidores, revisores, e endeusadores de Freud se propunham originalmente como meta. A psicanálise é ainda hoje a mais humana e libertadora das abordagens terapêuticas, o resto é fanatismo científico ou fanatismo religioso, os quais, como afirmou Nietzsche, essencialmente não se distinguem.
Fonte: Correio do Povo/CS/Roberto Barberena Graña (Psicanalista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Doutor em Letras pela UFRGS, pós-doutorando em Filosofia e Psicanálise por Paris VII) em 24/09/2016.