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Vilém Flusser — por Márcio Seligman Silva
Vilém Flusser — por Márcio Seligman Silva

FLUSSER ESSENCIAL

 

Na era de fundamentalismos mais do que nunca precisamos do pensamento de Vilém Flusser.  Ele foi um dos autores que mais longe levou a crítica da noção essencialista de identidade, que está na base tanto das ideologias que levam ao terrorismo, como também das respostas nacionalistas, que acabam provocando mais fundamentalismos.  Flusser nos ensinou a sair desse círculo vicioso, desse inferno que apenas serve para construir uma identidade que se alimenta do ressentimento e do ódio ao diferente.

 

Ele foi, antes de mais nada, uma grande força criativa.  Um pensador totalmente pós-disciplinar, ou seja, não se submeteu a nenhuma das disciplinas tradicionais e ajudou a reformular muitas delas, como a própria filosofia, mas também a teoria da comunicação, a estética, a teoria das artes e das imagens. Antes de se falar em fim da arte e da história da arte, sua abordagem já afirmava a necessidade de pensarmos uma teoria das imagens, abandonando o eurocentrismo e a idealização características da história da arte tradicional.  Também na teoria da literatura ele teve muito a contribuir.  Ele foi um poderoso teórico e historiador da escrita.  Percebeu a história do Ocidente como um embate entre a escrita e as imagens: que teve, no século XIX, um triunfo da primeira, que depois foi superada pelo novo triunfo das imagens.

 

No ensaio sobre a conquista da “apatricidade”, conceito central de sua visão de mundo,  publicado no livro “Bodenlos”:  Uma Autobiografia Filosófica” (Editora Annablume), ele descreve o “desmoronamento do universo”, ou seja, a sua expulsão de sua cidade natal, Praga, em 1938, como uma “rara vertigem  de libertação e de liberdade”.  Ele vê na Pátria (Heimat), antes de mais nada, uma técnica.  Esse olhar que Flusser lança sobre a Pátria como um dispositivo permite uma abordagem eminentemente desconstrutora desse aparelho que serve para criar identidade (muros, fronteiras, fortalezas, etc.) pela e para a violência.  Como nos ligamos a Pátria com muitos fios, costumamos sofrer com a ruptura dos mesmos.  Flusser, no entanto, transformou este abandono em conquista, passou do luto da perda, para uma reflexão sobre sua liberdade e seus ganhos.

 

Na sua experiência, ele percebeu que o nosso “enraizamento secreto” com a Pátria é na verdade “enredamento obscurantista”.  Essa libertação dos laços obscuros e até então considerados como profundos e naturais, leva a uma nova ordem ética.  Libertar-se da ideia de Pátria não deve ser compreendido como uma conquista da irresponsabilidade.  Antes, a responsabilidade agora passa a ser algo muito mais sério e pensado como o fruto de uma escolha refletida.  Flusser escreve:  “Não sou como aqueles que ficaram em sua pátria, misteriosamente amarrados a seus consócios, mas me encontro livre para escolher minhas ligações.  E essas ligações não são menos carregadas emocional e sentimentalmente do que aquele encadeamento, elas são tão fortes quanto ele; são apenas mais livres”.

 

O que significa o termo “Bodenlos” que dá título a sua autobiografia?  Esse termo-chave, tem vários significados.  Antes de mais nada remete à ideia de estar sem-chão, sem um solo fixo e conhecido sob os pés.  Flusser, expelido da Europa pelo nazismo, teve que aprender a viver em suspensão, sem seu chão de origem.   E aprendeu a extrair daí uma lição filosófica.  Descobriu que, apesar da dificuldade desse aprendizado, ele nos torna mais cidadãos (do mundo) e mais responsáveis ante os outros.  Mas “Bodenlos” significa também ausência de fundamento: ele aprendeu a desconstruir não só o fundamento da Pátria, mas também a destruir as ontologias identitárias de um modo geral.  Aprendeu a ver a cultura como um jogo de diferenças e não de essências.  Daí ele valorizar a construção de nossa autoimagem como homini ludens: seres lúdicos – e não seres destrutivos e assassinos como, infelizmente, continuamos a nos reafirmar.  Mais do que nunca, precisamos de Flusser, esse filósofo do engajamento e da responsabilidade cuja obra lança uma luz em nossos tempos tão sombrios.

  

Fonte:  Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/Márcio Seligmann-Silva (Tradutor, crítico literário e professor da Únicamp) em 16/01/2016