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Robert Musil
Robert Musil

O UNIVERSO DE ROBERT MUSIL

 

No começo do terceiro milênio, O HOMEM SEM QUALIDADES de Robert Musil foi destacado como o maior romance do século XX.  Tarde demais para o autor que faleceu em 1942, porém em conformidade com o amargo destino de muitos dos clássicos que costumam angariar reconhecimento e admiração depois da morte.  Vai aí um conselho para o público brasileiro – vale a pena seguir a dica daquele grupo de cem críticos, intelectuais, artistas.  Eis por quê:  Musil é divertido e profundo, sua sátira não impede o carinho amoroso; além disto, a lucidez com que analisa as baixezas humanas abre pequenos espaços para a esperança na sinceridade na grandeza moral.  E abaixo do humor cativante abrem-se camadas de sobra para quem gosta de refletir sobre os mistérios da humanidade, sem falar dos problemas morais, intelectuais e sociais.

  

Do primeiro ao derradeiro romance – O JOVEM TÖRLESS, TRÊS MULHERES, LEGADO EM TEMPO DE VIDA (Obra Prépostuma), Passando por ensaios como  SOBRE A ESTUPIDEZ e as reflexões sobre cinema e literatura, ou as anotações dos diários – Musil trata dos problemas que ainda são os nossos.  Entre eles: a defasagem oculta que separa nossos ideais democráticos e emancipatórios da Realpolitik e dos implacáveis mecanismos de poder, força e dominação praticadas – embora sorrateiramente – pelas grandes sociedades livres e pelos governos que cidadãos pacíficos e bem intencionados elegem regularmente.  Musil abordou esse dilema no seu grande romance O HOMEM SEM QUALIDADES. Deslocou os problemas da sociedade de massas (as tensões sociais, políticas e étnicas que preparam os totalitarismos do século XX) para um passado recente (o ano 1913, quando o Império Austro-Húngaro ainda estava intacto.  O cosmos da Belle Époque na iminência da Primeira Guerra de 1914-18 é um “pretexto”, anota Musil no seu diário, que permite descrever em miniatura os problemas da Europa autoritária e (proto)fascista que viria depois.  Nos equívocos, descuidos e, sobretudo, no preguiçoso laissez faire da velha Europa liberal, patriarcal, atrasada, Musil localiza as raízes capilares do cipoal venenoso que brotará no entre guerras.  Mas sua ficção se espraia em análises do mundo tecnológico e globalizado em gestação, em reflexões sobre as relações afetivas e eróticas sob a pressão da política e da propaganda, em experimentações com as possíveis respostas institucionais, individuais e cívicas às reestruturações do tecido social e em hipóteses sobre as prováveis alianças da ciência e da tecnologia com os complexos industrial e militar, e da arte e da religião com as máquinas de propaganda do estado.

  

Sua obra não caiu nas graças nem dos nazistas, nem dos intelectuais de esquerda.  Walter Benjamin achava Musil inteligente demais para ser um grande escritor, Brecht desprezava sua sensibilidade (que tem surpreendentes afinidades com Clarice Lispector), os artistas engajados o suspeitaram como reacionário, porque denunciou não apenas as atrocidades nazistas, mas também as do Stalinismo.  Como artista consciente das diferenças enormes que separam as aptidões poéticas dos talentos políticos e ideológicos, científicos e práticos – Musil se concentrou naquilo que um escritor pode fazer.  São três as tarefas do poeta: primeiro, usar com máxima precisão sua sensibilidade e a linguagem que o vincula com seu país e com o mundo, afim de localizar a teia de engodos e enganos que aprisiona a sociedade em ilusões perigosas.  Segundo, identificar em imagens cativantes as fraturas invisíveis da consciência individual e do imaginário social – fraturas e contradições que políticos e ideólogos costumam camuflar sob os véus da hipocrisia e da retórica fácil.  Terceiro, manter (no lugar das promessas grandiloquentes dos ativistas e intelectuais engajados) uma esperança minimalista, lampejos de uma paixão contida pela bondade e pelo amor, pela beleza e pela gratidão.

 

A irônica proposta de fundar um SECRETARIADO GERAL DE PRECISÃO E ALMA, é no fundo um lembrete aos cuidados dos artistas e intelectuais politicamente corretos para que não confundam as práticas do ensaísmo vago (que beira o divertimento comercial) com a ética do poeta e do escritor: esses têm o dever de sopesar palavras e emoções, localizando onde as emoções ambientes poderiam criar vínculos frutíferos com raciocínios mais complexos e exatos.

 

A higiene mental e emocional de Musil é inimiga ferrenha daquela literatura de sucesso que capta num enredo vagamente romanesco os estereótipos da atualidade, delineando e atiçando ardilosamente alguns anseios ainda crepusculares nas mentes dos cidadãos comuns.  Não hesitou em fustigar as leviandades de ensaístas que pareciam intocáveis no seu tempo (Oswald Spengler e Walther Rathenau) e certamente não hesitaria hoje em fazer o mesmo com premiados e festejados autores como Michel Houellebecq, cujas obras se parecem com ecos diminutos do romance musiliano.

 

A ambição de Musil tinha proporções gigantescas (traço frequentemente criticado neste homem reservado e cortante), mas o rigor e a graça da execução estavam à altura do espírito exigente, competitivo e quase belicoso:  “Reerguer a Áustria por meio de um romance, quem o teria ousado?” – escreve Elias Canetti com admiração irrestrita nos anos 1960 (O JOGO DOS OLHOS, 177) – “Eu não poderia aqui sequer começar a dizer tudo o mais que essa obra O HOMEM SEM QUALIDADES contém”.  Canetti tem razão:  cabe nele a Europa e o mundo globalizado.

 

Fonte:  Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Kathrin Rosenfield (Professora de Letras da UFRGS) em 31 de outubro de 2015.