NO LABIRINTO COM MANUSCRITOS
MARTIN HEIDEGGER
Se observarmos o adolescente andando de bicicleta, Saindo de sua aldeia para o Vale do Danúbio, não desconfiaríamos que, 40 anos depois, o senhor que fazia o mesmo caminho, agora com um pacote de manuscritos na garupa da bicicleta, era o mesmo. Diante do bombardeio dos aliados, o filósofo Heidegger se esgueirava com seus manuscritos na bicicleta para não correr o risco de seus manuscritos serem destruídos por uma bomba perdida. Esse professor, com 38 anos, tinha conquistado fama mundial com sua obra “Ser e Tempo”, de 1927.
Mas por que o filósofo estava tão preocupado em salvar os papéis onde registrara resumos de aulas e seminários? Sua preocupação nascia do fato de estar convencido de que esses manuscritos um dia fariam história. Ou, como diria, já sexagenário, “dariam indicações para salvar o Ocidente”.
De que família e de que formação viria esse adolescente de 1905? Nascido no “áspero Heuberg”, na região de Baden, no Sul da Alemanha, era filho do sacristão da aldeia, onde frequentaria a sua escola primária, para depois fazer a formação secundária em colégios ligados à tradição católica. É por isso que muito cedo seus superiores lhe sugeriram tentar uma formação para sacerdote, primeiro nos jesuítas e, depois, nos dominicanos.
Muito cedo o jovem entraria em crise e abandonaria a formação clássica da Teologia para decidir-se pelo doutorado em Filosofia. O filósofo confessa que, realmente, havia sido marcado por um livro, “O Significado Múltiplo do Ser” em Aristóteles, que recebera de um conhecido. Segundo sua interpretação, fora nessa ocasião que havia sido lançada a semente para a pergunta pelo ser que o envolveria durante a vida inteira. Isso tanto é verdade que os estudiosos contemporâneos realmente são unânimes em chamar Heidegger de o pensador do ser.
A Universidade de Freiburg, onde fizera seu doutorado e sua livre docência, se tornaria o centro de irradiação do seu pensamento. Ocupado com temas clássicos do neokantismo e da tradição medieval, recebera mesmo a promessa de ocupar a cátedra da concordata que representaria o pensamento católico num convênio com Roma. Isso realmente se teria realizado se não se desse o encontro com Edmund Husserl, que fora transferido de Goettingen. O jovem filósofo se fascinou pela fenomenologia husserliana e muito em breve começou a olhar tudo o que aprendera da filosofia clássica sob o ponto de vista do método fenomenológico. Essa escolha produziria o encontro entre a tradição metafísica e o pensamento fenomenológico.
Primeiro, seguindo cuidadosamente os passos de Husserl, não demorou em desenvolver, em poucos anos, um pensamento autônomo que seria denominado de Fenomenologia Hermenêutica. Podemos imaginar o jovem filósofo anunciando, em 1922, um curso de interpretação de Aristóteles, que teria como estudantes Hans Georg Gadamer, Hans Jonas, Hannah Arendt, Karl Löwith, Simon Moser, Helene Weiss (tia de Ernest Tugendhat) e vários outros alunos que teriam grande influência na filosofia nas próximas décadas. Outro seminário, intitulado Ontologia Hermenêutica, em 1923, seria o início de vários anos de atividade que conduziria à obra “Ser e Tempo”.
Se já a ocupação, no final da segunda década do século XX, com alguns temas como visão de mundo, epístolas de São Paulo, Santo Agostinho, leituras de Dostoievski, a correspondência de Van Gogh, revelava um novo caminho sob a influência da fenomenologia, a concentração em diálogos de Platão e obras de Aristóteles, junto com temas da escola histórica alemã, conduzem ao amadurecimento da fenomenologia hermenêutica em “Ser e Tempo”.
Qual seria o elemento novo que faria dessa obra um sucesso mundial em poucos anos? É que, pela primeira vez, a pergunta clássica de Platão e Aristóteles – “Que é o ser?” – foi colocada no contexto de uma analítica existencial. O que significava isto? Heidegger retomaria a questão do ser que, Platão e Aristóteles o confessavam, sempre os levava a uma aporia. O filósofo, então, retoma essa questão da metafísica e promete desenvolvê-la a partir da questão do sentido do ser. Assim ele se mantinha, de um lado, fiel à grande tradição da metafísica, e, de outro lado, propunha pensa-la no horizonte do tempo. O método que iria conduzí-lo seria a fenomenologia, agora na sua dimensão hermenêutica.
“Ser e Tempo” teria duas partes. A analítica preparatória seria composta de três secções: “Dasein e Cotidianidade”, “Dasein e Temporalidade” e “Tempo e Ser”. A segunda parte se constituiria numa destruição (ou desobstrução) da metafísica, a partir de Descartes, Kant e Aristóteles. Dessas seis secções anunciadas, o filósofo só desenvolveria, de modo sistemático, as duas primeiras. Enviadas para o Ministério da Educação, elas seriam suficientes para que o filósofo conseguisse uma nomeação como professor ordinário na Universidade de Marburg na der Lahn.
Finalmente, em 1926, o pobre adolescente que descia de bicicleta as encostas do Danúbio, onde visitava o centro cultural da época, que era o mosteiro de Beuron, conseguira um trabalho que lhe permitiria sustentar a família. Eram os tempos da inflação e da organização da República de Weimar. Quando, em 1929, Heidegger foi chamado para substituir seu mestre Husserl na Cátedra de Fenomenologia, em Freiburg, ele desenvolvera dezenas de manuscritos e notas de aulas que dariam naquilo que hoje chamamos o “primeiro Heidegger”. No semestre de 1929 a 1930, escreveria o curso intitulado “Problemas fundamentais da Metafísica – mundo, finitude, solidão”, sobre o qual, numa correspondência com sua amiga Elisabeth Blochman, diria: “Estou escrevendo a minha Metafísica”. Enfim, o filósofo de 40 anos chegara a um ponto de não retorno no desenvolvimento do seu projeto de analítica existencial, combinado com o projeto de desconstrução da metafísica ocidental.
No começo dos anos 30, surgiria um estilo de trabalho filosófico, onde o filósofo começa a falar numa reviravolta (Kehre). Começava ali a mais produtiva etapa que se chamaria “o segundo Heidegger”. É uma grande interpretação dos principais filósofos da Modernidade. O caminho, que ele confessava ser a análise da história do esquecimento do ser, era, na verdade, a execução de um grande projeto de mostrar a história do esquecimento do ser na metafísica ocidental. Aquela viagem, várias vezes repetida pelos labirintos da Floresta Negra, até Messkirch, sua cidade natal, durante os últimos anos da II Guerra, levava, meio escondido nas costas da bicicleta, o resultado, sobretudo das duas décadas de 1920 a 1940. Eram os seus escritos, que queria salvar da destruição, em lugar mais seguro do que sua casa em Freiburg. Ainda incerto sobre a segurança dos manuscritos, escondeu-os com seu irmão Fritz, num grande baú, levando-os a uma gruta rochosa no Vale do Danúbio, onde também estavam escondidos os manuscritos de Hoelderlin. O autor deste ensaio teve a oportunidade de, em 1965, examinar ligeiramente os manuscritos ainda no velho baú no sótão da casa do irmão, em Messkirch.
Os anos 20 tinham representado uma série de conflitos de diversos tipos que se limitavam à província, apesar de sua fama, por causa de “Ser e Tempo”. Toda a história de debates e decisões acontecia no contexto dos principais centros universitários. Os anos 30 levam o filósofo a decisões e conflitos, resultados de participação nas discussões sobre o destino do Ocidente e de sua aceitação como primeiro reitor nomeado pelo regime nacional socialista. Heidegger aceitara a reitoria, por pressão dos seus colegas de Conselho, para um período de quatro anos. Mas tais foram as pressões e divergências com o regime que ele se demitiu dez meses depois da posse. Porém, os conflitos da década de 30 se ampliaram nas manifestações de seus cursos e seminários, nos quais, além de interpretar os filósofos da metafísica, via neles um sinal do esquecimento do ser e, assim, a culpa de um processo político cultural que levaria o Ocidente ao desastre.
Por mais que se tenha a dizer sobre esse período, foi nos escritos dessa época que o filósofo abordou temas sociais, políticos e históricos, com seus recursos filosóficos, no desconhecimento completo do que as grandes ciências humanas poderiam trazer de interpretações e decisões acertadas. Mas isso terá que ser adiado para uma apresentação mais ampla que aqui não é possível.
No fim dos anos 50, e até a sua morte em 1976, o filósofo reuniu uma precária equipe, com seu filho mais velho e se irmão, para organizar, junto com a Editora Klostermann, sua Obra Conjunta. O primeiro volume, editado em 1976, traz, abordados num outro estilo, os temas que não desenvolvera em “Ser e Tempo”. O livro se chama “Problemas Fundamentais da Fenomenologia”. Era o primeiro dos mais de cem volumes até agora editados, e que estão sendo acrescidos por 20 volumes de correspondência e 12 volumes daquilo que está fazendo a agitação em torno do filósofo em nossos dias: trata-se dos “Cadernos Negros”.
Heidegger produziu toda a sua obra manuscrita em folhas de oficio que dobrava ao meio, escrevendo o texto do lado esquerdo interno e as observações no lado direito interno. Os “Cadernos Negros” foram assim denominados porque se trata de 12 volumes de notas marginais à filosofia, nos quais Heidegger faz as suas observações sobre a história do seu tempo, entre 1932 e 1948. Foram assim denominados de “Cadernos Negros” porque cada volume era enrolado num tipo de papelão impermeabilizado para proteger da luz e da umidade, através do piche. Os 12 volumes dos “Cadernos Negros” estão sendo editados através de um projeto de dois anos. É claro que a denominação dos cadernos por causa de sua cor não significa que sejam necessariamente “negros” em seu conteúdo. No entanto, como se trata de observações sobre o vivido de seu tempo, há neles temas abordados com julgamentos equívocos, dureza de interpretação, e preconceitos imperdoáveis num grande filósofo.
Se olharmos cada um dos parágrafos deste pequeno ensaio, temos de reconhecer que, em cada um deles, esconde-se um conteúdo que nos levaria a longas análises. Estas, em grande parte, estão sendo feitas no mundo acadêmico, nas milhares de obras sobre a filosofia de Martin Heidegger e nos debates públicos na imprensa especializada.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Ernildo Stein (Filósofo, professor da PUCRS, Autor de Pensar e Errar: um ajuste com Heidegger” – 1ª ed.Editora Unijuí, 2011) de 15/08/2015