TRUCULÊNCIA, VERGONHA, FASCISMO.
Das formas que definiam a vida civil na Atenas antiga, uma chama a atenção de quem estuda hoje os direitos humanos. Recordo a lei da Hybris (insulto, ultraje, abuso). É costume traduzir tal vocábulo por desmesura, orgulho insensato. A tragédia grega tem como cerne semelhante atitude. O herói tenta vencer os deuses e a fatalidade, mas sempre termina castigado e infeliz. Na cultura popular, colhida por Esopo, uma fábula narra o casamento de todos os deuses. Um a um eles foram unidos ao seu par. Até que chegou a hora do mais terrível, Polemos, que preside as batalhas. Ele se apaixonou por Hybris, a senhora do orgulho desavergonhado. E veio a desgraçada guerra de todos contra todos. Recomenda Esopo: as cidades não devem permitir que Hybris seja admitida como hóspede, porque ela atrai o seu amante, que preside a desgraça bélica. Píndaro ecoa a advertência: “Hybris é a ruína das cidades. Jamais se permita que a desavergonhada Hybris traga discórdia e arruíne a Eumênides, a tragédia apavorante, Ésquilo adianta: “Hybris é filha da impiedade”.
Poderíamos levar décadas esmiuçando as significações de Hybris. Ela, com frequência, é usada para indicar o comportamento arrogante dos ricos e poderosos contra o pobre e desprotegido. A palavra se aplica também a todo comportamento masculino que abusa do mais fraco (mulher, criança, estrangeiro, escravo) para seu prazer e auto-indulgência.
Segundo Aristóteles, hybris é ato que desonra e envergonha a vítima para o prazer ou gratificação do ofensor (retórica). Muito se fala, sem conhecimento efetivo de causa, sobre a pederastia na Grécia. Mas é bom lembrar que, naquela sociedade, a pena de morte era destinada a quem se aproveitasse, por hybris, dos jovens escolares. O veto ao uso do excessivo poder e da força física contra os mais débeis está unido ao sentimento e valor definidos em outra palavra, aidós (vergonha, respeito, caráter). O indivíduo atacado pela hybris não ruboriza ao dominar quem não possui o mesmo potencial de ataque. Assim, na mesma sociedade grega, ele recebe reprovação pela sua covardia. Se nos fosse permitido, traduziríamos o termo aidós como “consciência” pessoal e pública.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles indica que a vergonha, aidós, não é uma virtude (aretê) embora a pessoa que a possua deva ser louvada. Ela consiste num elemento essencial do processo pedagógico, pois suscita o sentimento de incômodo face ao que é feio ou ruim. Ela ajuda a modificar a mente e o ânimo (metanoia) para bem seguir o belo e o bom. O forte covarde suscita a vergonha pública.
Reflexões sobre a truculência (hybris) contra os frágeis e a vergonha (aidós), barreira contra o domínio do poderoso sobre o indefeso, vêm a mente quando constatamos o quanto no Brasil mulheres e crianças são batidas no lar e na rua, mortas por maridos, pais e companheiros, sem que lei Maria da Penha nenhuma impeça semelhante covardia.
No mês de junho, ainda em 2015, na Câmara de Vereadores em Campinas, São Paulo, a jovem professora Carolina Figueiredo (nossa ex-aluna da Unicamp) foi violentamente agredida por uma rapagão, Cássio Guilherme Silveira. Ele é o líder do Movimento Integralista local. O vídeo está no G1 da Globo.
Duas constatações: o fascismo está muito vivo. A segunda, homens brasileiros usam da hybris contra mulheres. Na Grécia democrática eles seriam punidos severamente, pois não tem vergonha de agir como animais que nunca chegam ao seu complemento aristotélico: políticos, polidos, civilizados.
Fonte: Roberto Romano/Professor Titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp/Jornal Zero Hora de 12/7/2015