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Vilém Flusser — por Gustavo Bernardo
Vilém Flusser — por Gustavo Bernardo

O HOMEM SEM CHÃO

 

PROFESSOR DE TEORIA DA LITERATURA VÊ NA AUSÊNCIA DE PÁTRIA DE FLUSSER A ESCOLHA PELA LIBERDADE DO PENSAR.

 

No início de sua autobiografia, Vilém Flusser se apresenta como bodenlos, isto é, como um homem sem chão, sem fundamento.  Para explicar o absurdo, Flusser faz analogia com a planta dentro de um vaso de plantas.  Em nome do amor à natureza, seres humanos enterram plantas em vasos e assim tiram o sentido das plantas.  Os migrantes são plantas arrancadas do solo original.  Sua condição bodenlos se agrava se a migração é forçada como a do filósofo, expulso da sua Praga natal por causa da invasão nazista.  Essa condição se agrava ainda mais se o migrante sobrevive, sim, mas perde toda a família, assassinada pelos nazistas.

 

Por isso, aflige a Flusser a questão crucial: devo ou não me suicidar?  Em outras palavras:  devo ou não emprestar sentido ao sem-sentido de que sou vítima?  A questão não é apenas pessoal.  Se me suicido, confirmo não haver sentido na existência – logo, Deus não existe.  Se não me suicido, continuo procurando sentido na existência – logo, continuo procurando Deus, um dos nomes da verdade.

 

No artigo “O Mito de Sísifo de Camus”, Flusser reconhece “que tudo carece de significado, é absurdo e se precipita na direção de uma morte absurda e sem sentido”.  Então por que não me matar, mergulhando, do trampolim do absurdo, na transcendência do nada?  Por que o suicídio é “uma espécie de metafísica, de truque teológico, em resumo:  uma tentativa desonesta de escapar do absurdo.  Consequentemente, o suicídio deve ser repelido, como qualquer outra espécie de metafísica”.

 

Ao repetir o suicídio, Flusser descobre “a liberdade do migrante”, como aponta o título de um de seus livros.  Aquele que migra precisa mudar de língua e dessa maneira sai do aquário da sua realidade para percebê-la de fora.  O migrante suspende as próprias crenças para pensá-las e assim repensar-se. O migrante percebe não apenas o absurdo que o constitui como enxerga com clareza o outro absurdo do mundo moderno:  o patriotismo.  O patriotismo reforça e justifica os outros ismos, tão nefastos quanto: racismo, machismo e especismo, por exemplo.  Flusser diagnostica sem meio-termo:  o patriotismo é o principal sintoma da nossa enfermidade estética.

 

“Somos animais que negam, e isto é a nossa dignidade”, afirma o filósofo.  Queremos sempre ser o que não somos, e por isso criamos a língua, a ciência, a ficção e a civilização.  Quando afirmamos com orgulho que somos isto ou aquilo, por exemplo brasileiros ou cristãos, tchecos ou judeus, suíços ou protestantes, afirmamos um pouco demais – e desta maneira negamos a negação que nos constitui e nos diferencia.

 

Afirmar-se patriota implica glorificar o mais puro acaso como se acaso não fosse.  Afirmar-se patriota implica fingir que se escolheu nascer e viver nesta pátria, nesta família, nesta religião e nesta época, quando não escolhemos nada disso.  Aqui estamos, sim, mas à nossa revelia.  O migrante, porém, contempla as suas pátrias, a antiga e a nova, de fora.  Há dor, às vezes muita dor, como no caso de Vilém, mas também imprevista liberdade.  Essa liberdade constitui o estilo filosófico do pensador, mesclando o silogismo com a metáfora e o axioma com a ironia.  Sua filosofia tornou-se conhecida como a expressão mais acabada da “ficção filosófica” tão procurada pelos filósofos, porque junta especulação com poesia.

 

O leitor de Vilém Flusser rompe, pouco que seja, as fronteiras e os limites das pátrias, das raças, das religiões, das escolas, das universidades, das disciplinas, enfim, do conhecimento.  Ele não se prende às notas de rodapé, a que Flusser, aliás, nunca recorre.  O filósofo e seus leitores reconhecem a insegurança que os constitui, mas por isso mesmo podem escolher a cada instante o chão em que desejam pisar.  No momento em que se assumem sem fundamento, o filósofo e seus leitores reconhecem a dúvida que os atormenta desde sempre, mas por isso mesmo podem estabelecer seus próprios fundamentos. 

 

Vilém Flusser, o homem sem chão, é aquele que lavrou para nós o chão da liberdade.

  

Fonte:  Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/Gustavo Bernardo (Escritor e Professor de Teoria da Literatura na Uerj.  Escreve junto com o suíço Rainer Guldin, a biografia de Vilém Flusser, com publicação prevista para 2016, em português e em alemão.)  Em 16 de janeiro de 2016.