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Walter Benjamin por Erick Felinto
Walter Benjamin por Erick Felinto

O PENSADOR DAS PASSAGENS

 

Os pensadores mais interessantes são sempre aqueles que não sabem comportar-se bem.  São contraintuitivos, não se encaixam facilmente em nenhuma categoria e perturbam a ordem dos saberes estabelecidos.  O problema é que, ao defini-los dessa forma (ao defini-los de qualquer forma), imediatamente subtraímos algo de sua incontrolável fluidez.  Descrevê-los é  limitá-los no interior de categorias – por mais que tais categorias possam parecer abertas.  Suas obras, menos que explicação, demandam conversação.  Walter Benjamin foi certamente um desses agitadores, cujo destino trágico colaborou ironicamente para a póstuma fama mítica.  Se alcançou uma espécie de unanimidade acrítica, a obscuridade de sua escrita deveria testemunhar contra todo tipo de apropriação fácil.  Mas Benjamin se tornou, de fato, popular nos mais diversos horizontes, da teoria literária à filosofia e aos estudos culturais.

  

Em Portbou, cidadezinha da Catalunha onde cometeu suicídio (se é que se tratou de fato de suicídio e não de assassinato, como sugerido no documentário de David Mauas, QUIÉN MATÓ A WALTER BENJAMIN, 2005), pode-se admirar o belo memorial construído pelo artista israelense Dani Karavan.  Com o título de PASSAGENS, a obra faz referência não apenas à breve e fatídica passagem de Benjamin pela fronteira franco-espanhola, mas também àquele que possivelmente é seu trabalho mais famoso, o chamado PASSAGEM-WERK ou PROJETORAS ARCADAS.  É curioso que uma das maiores contribuições de Benjamin à cultura seja uma obra inacabada e intencionalmente fragmentária.  Esse testamento benjaminiano, que se move entre documentos dos mais diversos tipos e passa com facilidade da literatura aos anúncios publicitários, é talvez o mais perfeito retrato da forma de pensamento preferencial do autor.  Um pensamento que pode ser qualificado como nômade, móvel, sempre incompleto e em estado de revisão, sempre avesso ao acabamento e ao formalismo tipicamente acadêmicos.  O TRABALHO DAS PASSAGENS deveria ser, em sua armadura textual, uma espécie de decalque das novas linguagens midiáticas às quais o mundo moderno nos acostumou, como é o caso da montagem no cinema.

  

Essa dimensão experimental do discurso teórico benjaminiano tem importância fundamental porque ali não se trata simplesmente de analisar, de modo distanciado, a gênese da modernidade.  Trata-se, antes, de presentificar a experiência moderna, de torná-la sensível para o leitor.  Assim como no célebre e  igualmente fragmentário projeto Mnemosyne, do historiador da arte Aby Warburg, o TRABALHO DAS PASSAGENS opera em um registro que poderíamos definir como intuitivo.  E, de fato, as semelhanças entre as propostas de Benjamin e Walburg já foram apontadas por vários autores.  Em ambos, o leitor/observador vivencia constelações de ideias e imagens que configuram o coração da experiência moderna.  Trabalhando com os restos, ruínas e rastros da grande cidade moderna, Benjamin materializa, em sua obra, a Paris do século XIX.

 

É nessa ideia, possivelmente, que consiste uma das maiores contribuições do pensador ao campo das ciências humanas.  Em lugar de limitar-se à interpretação de documentos históricos, Benjamin entendeu que era necessário analisar as configurações materiais da experiência na modernidade.  Se a hermenêutica, como arte da interpretação, esteve por milênios no cerne dos procedimentos teóricos e das metodologias das ciências do homem, Benjamin nos apresenta um ponto de vista sensível à dimensão material dos meios, tecnologias e territórios que compuseram a gênese da vida moderna.  Foi, assim, certamente, um importante precursor dos estudos sobre a dimensão material da cultura, empreendidos, mais tarde, por autores como McLuhan e Innis.  A imprensa, o rádio, o cinema moldaram nosso modo de entender o mundo a partir de suas especificidades técnicas e do tipo de experiência cognitiva que engendraram em seus usuários.  Deles derivou a “matéria” com que moldamos nossos sonhos e expectativas.  É por isso que, Benjamin, crítico tão sensível da literatura e daquilo que chamávamos a “alta cultura”, sempre esteve atento às inovações técnicas e às mudanças de regime de valor nos objetos culturais.  Como pouquíssimos em sua época, ele percebeu claramente a relatividade desse sistema de valores.  Mais que isso, Benjamin acreditou que questões de estética estão sempre intimamente entrelaçadas com questões políticas.  Nesse sentido, nos tempos sombrios em que vivemos, sob a constante ameaça de seduções fascistas e reacionárias, Benjamin é um pensador que faz enorme falta.  Sua atualidade é a daqueles que pertenceram profundamente às suas épocas e, por isso mesmo, paradoxalmente, pertencem a todas as épocas.

 

Fonte:  Correio do povo – CS Caderno de Sábado/Erick Felinto (Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ) em 17 de outubro de 2015.