CAMPO DA COMUNICAÇÃO ALICERÇADO NA FENOMENOLOGIA E NA SEMIÓTICA.
CHARLES SANDERS PEIRCE
Antes do estudo de qualquer ciência, de acordo com C. S. Peirce, cientista, lógico e filósofo norte-americano (1839-1914), o pensamento filosófico deve começar com um sistema de lógica, concebida em um sentido muito amplo como sinônimo de semiótica, esta alicerçada na fenomenologia. A principal tarefa que a lógica tem de enfrentar é a de estabelecer uma tabela formal e universal de categorias a partir da análise mais radical de todas as experiências possíveis. Depois de muitas idas e vindas, foi apenas em 1904 que Peirce reconheceu que a diferença entre a matemática, a filosofia e as ciências especiais dependia do modo de observação empregado por cada uma delas. A partir disso ele deduziu que as categorias são objeto de estudo da psicologia, já que para chegar a elas nada mais é necessário, exceto a cuidadosa atenção fenomenológica ao phaneron (qualquer coisa, qualquer que seja, que aparece de alguma maneira à mente), portanto, algo no aberto que pode ser observado por todas as pessoas em condições físicas e mentais não patológicas.
A filosofia tem por tarefa descobrir o que é verdadeiro, limitado, no entanto, à verdade que pode ser inferida a partir da experiência comum que está aberta a todo ser humano, em qualquer tempo e lugar. A primeira e mais difícil tarefa que a filosofia tem de enfrentar é a de encontrar as categorias universais da experiência. Esta atribuição cabe à fenomenologia, uma quase-ciência cuja tarefa é providenciar a base observacional para o resto das disciplinas. Assim, a doutrina peirciana de categorias, desenvolvida desde 1867, foi anexada à ciência da fenomenologia, a primeira e mais básica disciplina de seu edifício filosófico, também composto pelas ciências normativas indissoluvelmente unidas (estética, ética e lógica ou semiótica), de cuja união decorre o pragmatismo (“um nome suficientemente feio para ficar a salvo dos raptores”) e pela metafísica.
As categorias estão universalmente presentes em qualquer fenômeno, seja ele físico ou mental. Eles são, portanto, conceitos simples, aplicáveis a qualquer coisa; em suma, são ideias tão gerais que devem ser consideradas muito mais como tons ou finos esqueletos do pensamento do que como noções estáticas ou terminais. Elas são dinâmicas e interdependentes, ou melhor, onipresentes. Uma vez que são universais e formais, não substituem ou excluem toda a variedade infinita de muitas outras categorias particulares e materiais que podem ser encontradas em todas as coisas. Para se ter uma ideia da amplitude e abertura máxima destas categorias, em seu nível mais geral, primeiridade ou Mônada é o começo, o que corresponde às noções de acaso, indeterminação, imprecisão, incerteza, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor, potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade e sentimento. Secundidade ou Díada se refere ao que é determinado, terminado, final, correlativo, necessário, reativo, ligando-se às noções de objeto, relação, polaridade, negação, matéria, realidade, força bruta e cega, compulsão, ação-reação, esforço-resistência, aqui-agora, oposição, efeito, ocorrência, fato, vivacidade, conflito, surpresa, luta, dúvida, resultado. Terceiridade ou Tríade é mediação, desenvolvimento, devir, processo, generalidade, continuidade, crescimento, inteligência, lei, regularidade, aprendizagem, hábito, signo. Assim, por exemplo, o fio da vida é um terceiro, devir sem começo nem fim; o destino, que corta a vida e a determina, é força bruta e cega, secundidade; já a indeterminação potencial, livre e espontânea de tudo o que está apenas começando, é primeiridade.
Todo o edifício filosófico de Peirce está alicerçado nessas categorias. Sua doutrina de signos ou semiótica está inteiramente baseada nas três categorias e não há como penetrar nas sutilezas de suas muitas definições e classificações dos signos sem uma compreensão cuidadosa de sua fenomenologia. Mais importante, no entanto, é o modo como a semiótica brota diretamente do seio da fenomenologia. A forma mais simples de Terceiridade é a noção de signo. Se o universo de signos é o território legítimo da semiótica, isto já começa dentro fenomenologia, ou mais precisamente, a terceira categoria fenomenológica já é uma categoria semiótica, enquanto as categorias da secundidade e primeiridade são quase-semióticas, pois apenas a tríade é genuinamente semiótica. Entretanto, Peirce leva a noção de signo tão longe a ponto de considerar reações de secundidade como quase-signos. Leva ainda mais longe a ponto de considerar meras possibilidades, qualidades ou sentimentos como quase-quase-signos. Estas são as fontes das suas classificações de signos, sob o domínio da terceiridade, secundidade e primeiridade.
Tais classificações não devem ser consideradas como meras classificações strictu sensu, mas como padrões que incluem, de acordo com Buczynska-Garewicks, todos os aspectos ontológicos e epistemológicos do universo sígnico: o problema da referência, da realidade e ficção, a questão da objetividade, a análise lógica do significado e o problema da verdade. Se, de um lado, classificações do tipo qualissigno icônico remático (ou seja, do nível de primeiridade), ou do tipo sin-signo indicial dicente (no nível de secundidade) ou ainda do tipo legi-signo simbólico argumental (no nível de terceiridade) podem muito bem ser utilizados como ferramentas para a compreensão do contexto e das significações de processos empíricos de signos, tais como imagens, fotografias, vídeos, discursos, audiovisuais e sons, de outro lado, essas classificações também podem, antes de tudo, funcionar como uma vastíssima cartografia cognitiva, fenomenológica e epistemológica para qualquer tipo de investigação ou pesquisa de qualquer espécie que seja, especialmente no campo das comunicações no qual os signos fazem o seu grande reinado.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Lucia Santaella (Professora titular da PUCSP com doutoramento em Teoria Literária pela PUCSP e livre-docência em Ciências da Comunicação na ECA/USP) em 15/08/2015.