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Friedrich Nietzsche e a Felicidade
Friedrich Nietzsche e a Felicidade

NIETZSCHE, TORNA-TE QUEM TU ÉS

 

Dele já se disse praticamente tudo e o contrário. O alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) desperta paixões e ódios com a mesma violência e a mesma velocidade. Quem não o conhece? Quem não o cita vez ou outra? Quem já não tatuou ou pensou em tatuar uma frase dele no corpo? Quem não leu ou escreveu algo dele nas redes sociais? Quem já não falou do seu Zaratustra? Do super-homem? Da sua paixão pela ousada, genial e desconcertante Lou-Andréa Salomé, a mulher que também abalou o coração de Rilke e de Freud? Quem já não o chamou de louco?

 

Nietzsche divide. Há quem veja nele o pensador da liberdade, da altivez, da luta contra a submissão à religião, da denúncia das falsas verdades moralistas. Há quem veja nele, por outro lado, o defensor do triunfo do mais forte e até a base do ideário nazista. Os apaixonados por Nietzsche rejeitam qualquer ressalva, crítica ou aproximação com o pensamento nazista. Todos os problemas são atribuídos às seleções e deturpações que a irmã de Nietzsche, a racista Elisabeth, teria feito como responsável pelo espólio do filósofo. Os críticos de Nietzsche denunciam as suas contradições e inequívocas predileções por heróis aristocratas acima do suposto rebanho dos homens medianos e tristes.

 

A vida de Nietzsche foi uma pedreira. A doença mental, provocada pela sífilis, fez dele um homem infeliz, boa parte da existência recluso em manicômios ou entregue a viagens em meio ao desespero e à solidão. Provocador nato, escritor de aforismos devastadores, comprou briga com o seu tempo ao afirmar que Deus estava morto e ao fazer um louco procurá-lo com uma lanterna: “Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e corria pela praça, gritando: ‘Eu procuro Deus!’ ‘Eu procuro Deus!?’” Nietzsche considerava compaixão, bondade, generosidade e solidariedade como recursos dos fracos, “moral escrava”, estratégia de ressentimento e inveja contra a liberdade de agir dos fortes e capazes de realizar grandes e sublimes obras.

 

Nietzsche não parecia a creditar no que os filósofos gregos diziam sobre a felicidade como eudaimonia nem sobre a organização racional da existência. A vida para ele não pode conduzir à paz de espírito nem possibilita o prudente controle dos desejos e instintos. É vulcão, energia, ímpeto, potência em ato, força, ambiguidade, violência, combate, instinto de sobrevivência, luta e rivalidade. Criança feliz e mimada, homem doente, Nietzsche queria liberdade a humanidade dos seus grilhões morais, mas deixava entender que só os fortes de espírito seriam capazes de transcender à banalidade e fazer jus aos ares dos cumes do mundo. O que se poderia chamar de felicidade? A mediocridade tranquila da vida em rebanho? Não. Jamais.

 

Além do bem e do mal – A felicidade é uma conquista. Em A GAIA CIÊNCIA, Nietzsche mostra a dureza do jogo num fragmento intitulado “o caminho da felicidade”: “Um sábio perguntou a um louco qual era o caminho da felicidade. Este respondeu de imediato, como se lhe tivesse sido indagado o caminho da cidade vizinha: - Admira a ti mesmo e habita na rua! - Alto lá, exclamou o sábio – pedes demasiado, é suficiente admirar a si mesmo! O louco respondeu: - Como admirar necessariamente sem um desprezo constante?” O que se pode compreender dessa reflexão? O louco pode ser mais sábio que o homem de razão. Eis.

 

Friedrich Nietzsche colocou o edifício da filosofia no chão. Mostrou que o homem de seu tempo estava esgotado, saturado de falsas verdades, empanturrado de ilusões, domesticado. Era, portanto, tempo de romper. Daí a retomada da imprecação do poeta grego Píndaro: “Torna-te quem tu és”. Para de fugir. Sai do armário. Admira-te. Vai para a rua.

 

Em “Ecce Homo”, tudo se torna mais direto: “Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor de si”. Trata-se de uma descoberta e de uma aceitação.

 

Quantos homens são preparados para negar o que os caracteriza? Como ser feliz tendo, por educação ou adestramento, de encarnar um personagem que se choca permanentemente como uma inclinação profunda mesmo quando dela ainda não se tem plena consciência? A questão não passa por negar a aparência em nome de uma verdade profunda inexistente, mas por assumir a própria aparência como verdade profunda. Ser o que se é sem tentar querer ser o que não se pode ser.

 

Em PARA ALÉM DO BEM E DO MAL, Nietzsche enfatiza em tom pessimista: Os homens que conheceram a profundidade da tristeza, se traem quando são felizes, têm um certo modo de compreender a felicidade que parece mostrar que querem comprimi-la e sufocá-la, por ciúmes – porque sabem que, infelizmente, essa logo fugirá”. O que fazer contra a efemeridade? Como se contentar com pouco. Nesse mesmo livro radical, Nietzsche propõe pensar por imaginação: “Suponhamos que um indivíduo tenha sonhado repetidas vezes que voava e que tenha acabado por acreditar que pode e sabe voar. Este indivíduo que conhece a sensação de certa leveza, que acredita que pode ‘subir’ sem esforço nem tensão, ‘descer’ sem rebaixar-se, como não haveria de dar à palavra ‘felicidade’ uma cor e significação distinta? Como poderia ser feliz quem se nega e precisa rastejar para ser aceito no rebanho?

 

Fonte: Correio do Povo/caderno de Sábado/Juremir Machado da Silva em 05/01/2019