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Edgar Morin: Tolerância/Igualdade/Amizade/Amor
Edgar Morin: Tolerância/Igualdade/Amizade/Amor

EDGAR MORIN

 

QUATRO ÉTICAS: TOLERÂNCIA, IGUALDADE, AMIZADE E AMOR.

 

ÉTICA DA TOLERÂNCIA

 

A intolerância é um equivalente psíquico do mecanismo imunológico da rejeição de si; constitui uma recusa daquilo que não está em conformidade com nossas ideias e crenças.  A ética da tolerância opõe-se à purificação ética.  Há uma primeira tolerância, expressa por Voltaire, que respeita o direito do outro de exprimir-se, até mesmo de uma maneira que nos pareça ignóbil.  Isso não significa tolerar o próprio ignóbil.  Mas evitar que venhamos a impor nossa concepção de ignóbil para proibir uma declaração.  Assim, para o ortodoxo, toda heresia é ignóbil; para o integrista, a liberdade de pensamento é sempre ignóbil; para o stalinista, a crítica da URSS era uma calúnia ignominiosa.

 

A segunda tolerância é inseparável da opção democrática.  A democracia alimenta-se de opiniões diversas e antagônicas e o princípio democrático convida cada um a respeitar a expressão das ideias opostas às suas.  A terceira tolerância obedece à concepção de Niels Bohr para quem o contrário de uma ideia profunda é uma outra ideia profunda: em outras palavras, há uma verdade na ideia antagônica à nossa que deve ser tolerada (...)  A tolerância recusando a intimidação, as interdições, o anátema, dá prioridade ao argumento, ao raciocínio, à demonstração.  A tolerância é fácil para o indiferente e para o cínico, mas difícil para o sujeito de convicções.  Ela comporta o sofrimento; o sofrimento de tolerar a expressão de ideias revoltantes sem se revoltar.

 

ÉTICA DE LIBERDADE

 

Se a liberdade é reconhecida na possibilidade da escolha – possibilidade mental de analisar e de formular a escolha, possibilidade exterior de exercer uma escolha –, a ética de liberdade para o outro pode ser resumida pelo que diz Von Foerster.  “Age de maneira que o outro possa aumentar o número das escolhas possíveis”.

 

ÉTICA DE FIDELIDADE À AMIZADE

 

A amizade não é somente uma relação afetiva de apego, de cumplicidade; a verdadeira amizade estabelece um vínculo ético de fraternidade quase sagrado entre amigos.  A amizade parte de afinidades subjetivas, ou chega a elas, transpolíticas, transclassistas, transéticas e tranraciais, como o amor.  O caráter sagrado da verdadeira amizade dá-lhe prioridade sobre os interesses, as relações e a ideologia.  A qualidade da pessoa importa mais do que a qualidade das suas ideias ou opiniões.  Como diz Lichtenberg: “Regra de ouro, não julgar os homens pelas suas opiniões, mas pelo que as suas opiniões fazem deles”.

 

Não se deve confundir amizade com camaradagem.  Experimentei, dentro do grande Partido, o calor dos camaradas, mas aquilo não era amizade, pois, desde que houvesse condenação pelo aparelho, cada um virava as costas ao amigo e, pior, denunciava-o como inimigo.  O camarada pode tornar-se um falso irmão.  O amigo é um irmão por escolha.  A ética de fraternidade atua de maneira intensa e concreta na amizade.  O dever de amizade pode entrar em conflito com outros deveres sagrados; descobre então as contradições éticas das quais já falamos.  A escolha que divide pode reclamar o sacrifício da amizade, jamais a traição ao amigo.

 

ÉTICA DO AMOR

 

O amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos.  Leva-nos à realização pela nossa união.  Se o amor leva ao paroxismo a aptidão integracionista do princípio altruísta de inclusão, corre o risco de ser apropriado pelo princípio egocêntrico de exclusão, que monopoliza o ser amado e o encerra numa posse ciumenta.  O verdadeiro amor considera o ser amado como igual e livre; como diz Tagore, “exclui a tirania e a hierarquia.”

 

Há muito mau amor não somente nas sociedades em que persiste a submissão das mulheres à autoridade masculina, mas também em nossa civilização individualizada em que dois egocentrismos podem, em confronto, dividir o amor.  Nosso mundo sofre de insuficiência de amor.  Mas sofre também de mau amor (amor possessivo), de cegueiras de amor (inclusive, com o já dissemos, na religião do amor e na ideologia da fraternidade), de perversões de amor (fixações em fetiches, objetos, coleções de selos, anões de jardim), aviltamentos do amor que degeneram em ódio, ilusões de amor e amor por ilusões... Como fazer que se compreenda que o amor deve consagrar-se ao frágil mortal, vulnerável, efêmero, condenado ao sofrimento e à morte?

 

Não se pode resolver tudo pelo amor.  O amor tem os seus parasitas íntimos, que o cegam, a sua ânsia autodestrutiva e os seus surtos devastadores.  No máximo da intensidade de toda paixão, inclusive a amorosa, precisamos contar com a vigilância da razão.  Mas não existe razão pura, e a própria razão deve ser estimulada pela paixão.  No mais frio da razão, precisamos de paixão, ou seja, de amos. (fragmento de “O Método 6”, a ética).

  

Fonte:  Correio do Povo/Caderno de Sábado em 2 de julho de 2016.