OS NEXOS ENTRE O PODER E A VERDADE
MICHEL FOUCAULT – SEPARAR-SE DE SI É TAMBÉM REINVENTAR O PRESENTE.
Escrever contra si próprio. Eis uma das belas lições que Michel Foucault nos oferece em seus ditos e escritos. “Não me perguntem quem sou e não me digam para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”. Aqueles que associam o autor a uma escrita contra os meios de confinamento, os mecanismos de normalização e medicalização da vida, da loucura e da sexualidade, podem se surpreender que ele escreva também contra si mesmo. É que para Foucault o “si mesmo” não é o lugar de uma verdade que devamos proteger, mas um campo de cuidados e questionamentos onde aquilo que somos e nos tornamos são tanto um efeito das relações de poder, discursos e saberes com os quais lidamos historicamente, quanto um domínio de elaboração ética e estética. Todo enfrentamento do que nos assujeita envolve, assim, um trabalho sobre si mesmo. E seus livros não cessam de nos convidar a problematizar aquilo que nos parece mais familiar e mesmo natural: a periculosidade do louco, a necessidade da prisão, a verdade contida em nossa sexualidade, a prática de confessar a si mesmo e de se colocar orelhas em locação, o humanismo do homem.
Lição que é, também, uma tomada de posição sobre a função política do intelectual. Foucault preferia falar de seus textos como caixas de ferramentas das quais poderíamos tomar uma frase ou ideia aqui ou acolá e usá-las para produzir um curto circuito qualquer nas evidências estabelecidas. Essa tomada de posição está atrelada ao modo como o autor repensa, na herança de Nietzsche, os nexos entre poder e verdade: a relação entre poder e verdade não é oposição (a verdade sendo o que nos livraria das amarras do poder), mas sim de aliança (o exercício do poder está circularmente vinculado aos regimes de verdade).
A questão política portanto não é o erro, a ilusão ou a ideologia; é a própria verdade e seus modos de produção. A singularidade de sua analítica do poder está aí indicada. Importa menos denunciar aquilo que o poder nega ou esconde do que compreender como ele se exerce. Isto é, entender como ele produz positivamente, desde baixo (e não desde o alto, como usualmente se supõe) e segundo uma rede heterogênea de elementos, modos específicos de conduzir nossas condutas. Talvez tenha sido a propósito da sexualidade que Foucault tenha desenvolvido esta tese com mais radicalidade: o sexo não foi reduzido ao silêncio ou a um tipo de interdição que calaria a sua verdade; ao contrário, o controle sobre a sexualidade vai de par com uma incitação discursiva a confessar, interrogar, interpretar o sexo e a sua verdade recôndita. Apenas aí, na loquacidade com a qual o Ocidente colocou o sexo em discurso e o atrelou a uma busca da verdade, pode-se compreender seus efeitos no âmbito da relação consigo.
Âmbito fundamental no pensamento de Foucault e que ganha um espaço cada vez maior nos seis últimos textos, onde anuncia um deslocamento de projeto: a partir de então, se dedicaria a “uma análise dos jogos de verdade através dos quais o ser se constitui historicamente como experiência, isto é, como podendo e devendo ser pensado”. O que impulsionou tal deslocamento? Segundo ele, uma simples curiosidade: “mas não aquela que procura assimilar o que convém conhecer e sim a que permite separar-se de si mesmo.
Voltamos ao ponto de onde partimos mas devemos adicionar dois elementos fundamentais. O primeiro é que a obstinação de um saber que busca o descaminho daquele que conhece é também um modo de escavar uma fissura a partir da qual seja possível inventar a si mesmo. Sobretudo no fim de sua vida, Foucault estava especialmente interessado nas técnicas de si que envolviam não apenas uma relação com a verdade – conhecer a si mesmo – mas uma estética ou uma arte da existência que ele encontra na cultura grega e greco-latina da Antiguidade. O segundo elemento é que tanto o separar-se de si quanto ocupar-se de si ética e esteticamente estão intimamente atrelados à tarefa de problematizar o mundo em que vivemos e rachar aquilo que, no presente, detectamos como os maiores perigos. Todas as histórias que Foucault nos contou – da loucura, da clinica, das ciências do homem, das prisões, da sexualidade – buscavam mostrar como aquilo que hoje nos parece evidente não é necessário, mas sim contingente, uma vez que já foi tão diferente no passado.
Dito de outro modo: evidenciar a descontinuidade e a diferença com o passado é um gesto estratégico para escavar uma diferença entre o presente e ele mesmo, uma via portanto de transformação, em que o presente comece a separar-se de si mesmo. Suas histórias eram por isso, dizia ele, sobre o próprio presente. Separar-se de si é também reinventar o presente. A lição de onde partimos ganha agora a atualidade que Michel Foucault tanto prezava em toda prática de pensamento e de liberdade. Num tempo em que forças conservadoras ganham terreno na vida e na política nacional, a caixa de ferramentas de Foucault é urgente.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Fernanda Bruno (Professora na Universidade do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisadora do CNPq) em 17 de outubro de 2015.