ENTREVISTA COM PETER SLOTERDIJK – FILÓSOFO
“A HISTÓRIA É O CHOQUE DE SISTEMAS IMUNOLÓGICOS”
Um dos mais contundentes filósofos contemporâneos, o alemão Peter Sloterdijk esteve em Porto Alegre, em outubro/2016, como convidado do Fronteiras do Pensamento. Autor de Crítica da Razão Cínica, best-seller na Europa na década de 1980 que faz alusão ao clássico kantiano Crítica da Razão Pura, ele sustenta que a marca do nosso tempo é a racionalidade cínica. Um tempo de inocências perdidas e “consciências infelizes”, em que nos tornaríamos “cúmplices” de desorientação, como ele descreve nesta entrevista, concedida por e-mail.
Atualmente reitor da Escola Superior de Design, em Karlsruhe, é um pensador que transita entre o erudito e o popular. Até 2012, ao lado do colega Rüdiger Safranski (biógrafo de Nietzsche e Kant), Sloterdijk apresentou o programa de TV O quarteto filosófico, analisando temas atuais. Sua mais recente publicação no Brasil é Esferas I: Bolhas, primeiro volume da trilogia que é considerada sua obra-prima e que ganha edição no Brasil pela estação Liberdade.
Qual deve ser o assunto de sua conferência em Porto Alegre?
O discurso que vou fazer em Porto Alegre vai lidar com a impossibilidade de paz em uma realidade global marcada pela colisão de sistemas imunológicos incompatíveis. Aqui entendo o termo “sistema imunológico” não em seu significado biológico ou médico, mas em um sentido muito amplo que abarca todas as instituições, rituais, leis e hábitos mentais baseados na experiência de que existem coisas nocivas acontecendo no mundo – coisas que preferiríamos evitar. O confronto das nossas medidas de prevenção produz rivalidade, guerra, e a tendência a minimizar as chances de sobrevivência das culturas concorrentes. Cada cultura na Terra desenvolveu um conjunto diferente de medidas de proteção, a fim de garantir sua própria continuidade. Daí a nova definição: toda história do choque entre sistemas imunológicos. O que costumamos chamar de “ética” é o esforço para superar as forças destrutivas encarnadas em sistemas concorrentes de autopreservação.
Enquanto Marx denunciava uma “consciência falsa” que precisaria ser esclarecida, o senhor diz que a marca da sociedade contemporânea é a “falsa consciência esclarecida”, caracterizada pelo cinismo. Qual seria o mais icônico exemplo dessa razão cínica nos dias de hoje?
Marx estava errado quando pretendia que toda a crítica devia começar com a crítica da “religião”. A verdadeira crítica tem de começar pelos falsos conceitos. A ideia de que Deus queria destruir a humanidade no Dilúvio é uma expressão pesada de como as pessoas podem se sentir culpadas, mas é um conceito falso. A ideia de que as viúvas devem ser queimadas com seus maridos também é um falso conceito. Para colocar a questão paradoxalmente como ela é: religião não tem nada a ver com religião. Na verdade, é tudo sobre a imunidade. Marx entendia “religiões” como invenções errôneas, em sua maioria ingênuas, que ajudaram os seres humanos a sobreviver aos sofrimentos de suas condições normais de vida. Deste ponto de vista, Marx permaneceu um Feuerbachiano medíocre: Deus é a projeção da humanidade no céu. Antes de realmente compreendermos a diferença entre a ilusão ingênua e a “falsa consciência esclarecida” – a definição de cinismo –, temos de deixar claro que as assim chamadas religiões são parte desses sistemas imunológicos abrangentes que chamamos de culturas. O cinismo surge quando a revolta e o “progresso” parecem tornar-se ideias vazias. Os cínicos clássicos do século 19 eram aristocratas decepcionados, às vezes os derrotados pela política bombástica de Napoleão. Não por acaso, essas pessoas preferiram a vida noturna, como vampiros e poetas malditos. No século 20, as enormes decepções provocadas pelos fracassados movimentos socialistas também deram origem a um rico espectro de fenômenos cínicos. O pior caso hoje, porém, é o movimento de massa dos irados perdedores do sonho americano.
Com a crise de 2008, muitos se apressaram e declarar o fim do capitalismo financeiro. Mas dados recentes mostram que as grandes fortunas especulativas só aumentaram. Por que o senhor acha que isso aconteceu?
A suposição de que a crise provocada pelo Lehman Brothers poderia ser o anúncio do fim do capitalismo financeiro foi um revival de nostalgias do socialismo tardio. Ela continha uma boa dose de esperanças de desastre suspeitas – o que significa que o fenômeno do cinismo não tem necessariamente afinidade com um determinado campo político.
Ainda sobre a crise: ela levou pessoas às ruas para manifestações contra a falta de regulamentação do capital. Na época, muitos tiveram a esperança de que se abririam a partir dali alternativas ao atual modelo. Para que, em sua opinião, essas alternativas não parecem ter florescido, e, pelo contrário, assistimos a um avanço global da direita conservadora?
Em nossos dias, a síndrome do cinismo como uma revolta agressiva contra a ideia de justiça, progresso e boa vontade está novamente alterando o campo partidário. Vejo muito poucos elementos “conservadores” nos novos movimentos de direita em todo o mundo, se por conservadorismo entendermos o justo sentimento pelos valores do passado. Percebo, em vez disso, muita raiva contra a civilização como tal e um ódio profundo contra as “elites” – sintomas que conhecemos muito bem das tentações totalitárias do século 20. Entre os intelectuais franceses tem havido, nos últimos meses, um debate significativo sobre a nova “desmoralização”.
O senhor também afirma que esse cinismo social é portador de um “quantum de infelicidade”, que deixa os cínicos vulneráveis, como num luto por uma “inocência perdida”. Isso explicaria o avanço da depressão como doença marcante de nosso século?
De um ponto de vista antropológico, os seres humanos comuns preferem estar entre os bons. Se isso não é mais plausível, uma certa tristeza moral vai recair sobre nossas vidas. Temo dizer que a palavra-chave para as “consciências infelizes” do nosso tempo é “cumplicidade”. Isso significa que a possibilidade de inocência, como tal, está desaparecendo. Como é triste não sermos capazes de ser melhores do que somos. Isso não significa que todos nós somos parceiros no crime, mas parceiros na desorientação.
Em seus escritos, o senhor também tem alertado que a globalização capitalista não representa apenas abertura, mas também uma certa redoma que separa os “de dentro” dos “de fora”. Em que medida o fenômeno da migração de refugiados para a Europa é uma expressão disso? Que desdobramentos o senhor imagina que esse afluxo trará para os próximos anos?
A diferença entre os “de dentro” e os “de fora” é essencial para um entendimento profundo de nossos tempos. Envolve o problema fundamental do mundo moderno: sua principal característica é a irresistível tempestade de urbanização. A migração contém apenas uma forma de expressão dessa “mudança climática” da vida rural para a existência na cidade grande. A propósito, os maiores fluxos migratórios têm ocorrido no interior da China e da Índia, a maioria deles completamente ignorados pelo resto do mundo. Em comparação com desafios daquelas dimensões, as preocupações de americanos e europeus de que muitos “deles” poderiam tentar cruzar as fronteiras são episódios de menor importância.
O senhor defende que uma das maneiras de ultrapassar o cinismo seria pelo resgate de virtudes originais do cinismo da antiguidade, o “kinismo”, o que incluiria o riso e a insolência. Qual seria o primeiro passo para essa virada?
Eu não repetiria essas frases hoje. Elas foram escritas em um espírito de frivolidade juvenil. Parece-me agora que há riso e insolência o suficiente no mundo. Lembre-se de como Breivik gargalhava quando matou aqueles jovens na ilha (o terrorista norueguês de extrema-direita Anders Behring Breivik, matou a tiros 76 jovens integrantes do Partido Trabalhista, 68 deles caçados a tiros em um acampamento de verão na ilha de Utoya). E não vejo falta de insolência, em nenhum campo. É muito melhor meditar sobre a palavra grega brotói. Significa “os mortais”. Originalmente, designava o sangue que pinga de um ferimento. Portanto, estamos sangrando, e temos que estar preparados para morrer. Que conceito simples e profundo! Se os seres humanos são mortais e se ser mortal significa depender de sistemas imunes em geral – em todos os níveis, simbólico, jurídico, econômico –, então um primeiro passo de uma ética não idiota para seres mortais deveria consistir em uma Grande Declaração Geral de Dependência.
Fonte: ZeroHora/Carlos André Moreira / carlos.moreira@zerohora.com.br e Letícia Duarte / leticia.duarte@zerohora.com.br em 02/10/2016.