O PENSADOR SEM CHÃO
Acabo de assistir à exposição sobre Vilém Flusser, na Academia das Artes de Berlim (Bodenlos: Vilém Flusser und die Künste). Grande, abrangente e competentemente organizada, ela presta homenagem a um pensador que desde há muitos anos é encarado, na Alemanha, como pioneiro fundamental da teoria da mídia, importante pensador da arte e precursor do debate de diversos problemas fundamentais da teoria cultural contemporânea. Para um brasileiro, a experiência é de um estranhamento radical, dada a desproporção do impacto do pensamento flusseriano nos ambientes acadêmicos alemão e brasileiro.
Flusser viveu no Brasil por 32 anos, mas ainda é uma figura bastante marginal por aqui. Seu nome quase não aparece em bibliografias ou ementas de cursos no campo da teoria da comunicação. A situação é similar em domínios como as artes e a filosofia. As razões dessa resistência são relativamente fáceis de entender. Além do conservadorismo típico do discurso acadêmico no Brasil, o projeto desenvolvimentista e tecnicista que hoje vigora na política nacional só poderia ser completamente avesso a um pensador da estirpe de Flusser, afeito à constante desconstrução da hierarquias e premissas dos saberes constituídos. E é verdade: Flusser apreciava frases bombásticas, tinha um estilo por vezes mistificador, assumia frequentemente riscos excessivos em suas previsões. Seu louvor da brincadeira e do poético provoca, justificadamente, espasmos no pensamento de matriz tecnicista.
Numa época em que as humanidades correm o risco de extinção total, dada sua “inutilidade” do ponto de vista dos burocratas e gestores do capital, Flusser encarna com perfeição o inimigo perfeito. Sua visão de uma futura sociedade criativa do ócio e do prazer ataca frontalmente os ditames do produtivismo e do pragmatismo que hoje imperam em todas as esferas da vida. É curioso, portanto, que sua obra provavelmente mais estranha e imaginativa, “Vampyroteuthis Infernalis”, seja talvez seu trabalho mais célebre. Traduzida para o inglês apenas em 2012, ela parece tornar-se rapidamente uma espécie de “best-seller acadêmico”, frequentando as páginas de autores como Katherine Hayles, John Durham Peters e Eugene Thacker, entre muitos outros.
Ao mesmo tempo tratado filosófico sobre a condição humana na sociedade tecnológica, investigação sobre a problemática do pós-humanismo, reflexão ecológica e divagação sobre o papel da arte em nossa cultura, Vampyroteuthis Infernalis opera com base no que poderia ser definido como uma “epistemologia fabulatória”. Trata-se, sugere Flusser, de questionar o estatuto do discurso da ciência, ao fertilizá-lo com a imaginação artística. Trata-se ainda, de alcançar a verdade pelo seu oposto, num exercício radical de desconstrução das nossas certezas e convicções por meio de uma ficção filosófica.
Dentre as várias contradições que pontuam o pensamento de Flusser, “Vampyroteuthis Infernalis”, escrito em parceria com o artista Louis Bec, concentra-se talvez na mais significativa. Ali encontramos a crença flusseriana na validade de certos aspectos do projeto humanista, ao mesmo tempo que a atitude antropocêntrica é decididamente revertida numa reflexão que aponta continuamente a necessidade de repensarmos o projeto humano que nos foi imposto ao menos desde o Renascimento. Admirador das conquistas tecnológicas (ou ao menos das possibilidades abertas pelas novas tecnologias digitais), Flusser de modo algum poderia ceder às paixões tecnicistas que veem no progresso e na produtividade as finalidades últimas da empresa tecnológica no Ocidente. A tecnologia deveria ter como ponto fulcral sempre o homem, inclusive no sentido de permitir sua radical transformação e a elaboração de projetos de humanidade inteiramente diversos daquele desenhado pela modernidade.
Em uma era na qual as potências criativas da internet são continuamente capitalizadas e postas a serviço das demandas desenvolvimentistas, Flusser é um autor vital. Mas é preciso prevenir-se contra um terrível equívoco. Flusser não deve ser lido no prisma da fidelidade e da reverência ao autor genial. Precisamos ler Flusser contra Flusser, tomando em consideração todos os seus equívocos, seus gestos mistificadores, sujas inadequações ao presente. Em outras palavras, Flusser, que questionou a relação entre autor e autoridade, não quer que o leiamos como oráculo ou mestre irretocável (ainda que muitas de sujas ideias tenham caráter quase que de profecia). Devemos lê-lo a partir de todas as nossas utopias fracassadas, de todas as ingênuas crenças na revolução digital como panaceia para os males da humanidade. Devemos lê-lo, enfim, a partir da perspectiva do nosso presente contraditório.
A humanidade futura, cria Flusser, poderia apropriar-se tanto das potências criativas quanto das forças conservadoras dessa estranha criatura, personagem central de sua fábula. Nós somos a “lula vampiro do inferno”, lançados em um mundo hostil, no qual podemos escolher tanto o caminho do individualismo e da competição como o da cooperação criativa. Flusser certamente pode nos ajudar nessa escolha e, desse modo, permanecer “vivo” entre nós como voz profética típica daquela tradição judaica da qual ele tanto se alimentou. E essa, possivelmente, seria a única forma de imortalidade à qual deveríamos almejar: “nós sobreviveremos na memória dos outros”.
Fonte: Correio do Povo-CS Caderno de Sábado/Erick Felinto (Professor do PPG em Comunicação da UERJ e Pesquisador do CNPq) em 16 de janeiro de 2016.