“O MEDO SE TRANSFORMOU EM ELEMENTO DA GESTÃO SOCIAL”
ENTREVISTA VLADIMIR SAFATLE, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA USP.
Sentimentos como o medo e a esperança devem ser levados mais em conta quando analisarmos interações sociais e políticas, defende Vladimir Safatle, professor livre-docente da USP e colunista do jornal Folha de S. Paulo. Partindo do princípio de que sociedades são, em seu nível mais fundamental, circuito de afetos, Safatle analisa em seu livro mais recente como o medo, por exemplo, é produzido e mobilizado para garantir adesão às normas sociais. E defende que a compreensão de como o indivíduo é afetado pelos outros e pelos acontecimentos pode contribuir para o esclarecimento da natureza dos impasses dos vínculos sociopolíticos. Nesta semana, Safatle virá a Porto Alegre para participar de um debate sobre a obra O CIRCUITO DOS AFETOS (Cosac Naify) com os professores Norman Madarasz e Nythamar de Oliveira. O evento foi promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o filósofo comenta alguns pontos do livro.
Que situações poderiam ilustrar seus conceitos de medo e esperança?
Se você pensar no campo político, na maneira com que os discursos a respeito de imigração, a respeito de terrorismo, a respeito dessa perda do nosso espaço natural, que seria o Estado-nação, vão sendo mobilizados, você percebe que nesses casos a política virou uma gestão social do medo. Por exemplo, há dois anos, na Inglaterra, uma pessoa com problemas mentais evidentes saiu à rua com uma machadinha gritando Allah Akhbar e acabou acertando um soldado e matando-o. Três horas depois, o primeiro-ministro David Cameron foi ao parlamento fazer um discurso inflamado em que dizia: “eles não vão conseguir nos destruir”. Você percebe a desproporção do fato? Uma pessoa com uma machadinha hoje pode parar um país. Por quê? Porque de fato o medo se transformou em um elemento fundamental da gestão social. E eu diria que isso é só um exemplo mais anedótico de um processo que todos nós conhecemos muito bem, cada país à sua maneira. Isso por um lado. Por outro, sobre a questão da esperança, eu insistiria no fato de que chegamos a uma política pós utópica. Não é mais possível imaginar que nós precisaríamos de alguma coisa como uma utopia, porque a utopia nos impede de compreender, de se abrir às contingências dos processos concretos e reais. Acho que esses dois elementos são muitos presentes na política contemporânea, que chegamos num esgotamento de certos afetos, que precisamos de outros afetos para trilhar de outra forma.
O senhor acredita que os laços sociais, como os conhecíamos, podem estar se dissolvendo na nossa época?
Acho que, na verdade, não é que os laços sociais estejam se dissolvendo. A questão é o tipo de afeto que constrói os laços sociais hoje. Quais são os afetos que realmente definem a natureza dos nossos laços sociais. Por exemplo, eu poderia afirmar que o medo é um afeto fundamental na construção de laços sociais. Seja do ponto de vista das relações introspectivas, seja do ponto de vista mais amplo das relações políticas. Ou seja, a ideia de que você entra em um vínculo social para poder dar conta ou para resolver um medo que lhe parece como um elemento de base fundamental. Da mesma maneira, eu poderia dizer que a esperança pode aparecer como um afeto fundamental de construção de laços sociais, só que essas duas ideias são bastante clássicas. Eu quis explorar uma terceira ideia, a de que era possível afirmar que o desamparo constitui um laço social. Não porque as pessoas constituem laços procurando amparo. Essa seria a leitura inicial. É possível você utilizar uma saída mais freudiana para falar que as pessoas entram em relações sociais para firmar seus desamparos. Firmar seu desamparo quer dizer que você entra nas relações sabendo que não vai encontrar no outro aquilo que o ampara. Eu vou encontrar no outro aquilo que me despossui, que me desampara. Mas é um desamparo formador. De certa forma, significa uma capacidade que eu vou desenvolver de me abrir àquilo que eu não controlo no outro.
Isso traz algo de positivo?
Esse afeto é fundamental, ele diz respeito à maneira que seremos capazes de lidar com os acontecimentos. O verdadeiro acontecimento é sempre algo que nos desampara, que eu não controlo, que não sou capaz de prever e que não é resultado de nenhuma projeção feita por mim. A capacidade que eu tenho de me abrir aos acontecimentos, de me abrir à contingência dos acontecimentos, à força de despossessão dos acontecimentos, ela só ocorre quando eu compreendo o desamparo como um afeto necessário.
Falando em desamparo como afeto necessário, o que o senhor pensa sobre o atual momento político do país?
Acho que uma questão que ultrapassa a questão brasileira e que é de fato uma situação da política mundial hoje em dia é, por um Lado, a compreensão de que não é mais possível apelar a políticas marcadas pela utopia. A utopia também tem um afeto, uma certa esperança. Mas é uma esperança muito peculiar, que consiste no resultado de uma projeção. Eu projeto no tempo uma expectativa. É por isso que eu espero. Esperança significa expectativa de que um bem ocorra no futuro. E nós percebemos muito esse tipo de expectativa na qual eu tento organizar o tempo a partir de uma projeção prévia a respeito do que deve ocorrer. Eu diria que esse tipo de perspectiva já não serve mais para nós. Na verdade, nós precisaríamos ser mais capazes de nos abrirmos a essa dimensão contingente dos acontecimentos. Acho que isso é um elemento muito sintomático da política contemporânea, de lidar com a dimensão contingente dos acontecimentos.
Em Porto Alegre, muitos coletivos feministas criaram iniciativas para inibir a violência contra a mulher. Qual sua opinião sobre esse tipo de movimentação?
Há uma questão muito concreta a respeito da violência contra as mulheres no Brasil. Os dados são bastante alarmantes. O número de estupros no Brasil é extremamente significativo. E, na verdade, coloca o Brasil no topo, ou entre os principais países onde temos descrição de violência contra as mulheres. E é uma violência contra a mulher, mesmo. Eu insistiria muito nesse aspecto, assim como existe a violência contra negros pelo fato de serem negros, contra homossexuais pelo fato de serem homossexuais. Acho que, nesses casos, é muito importante que a sociedade demonstre seu desconforto em relação à naturalização desse nível de violência que sempre foi visto como alguma coisa que não merecia ser discutida. Quase como um dado da natureza, no caso brasileiro. Nesse ponto, acho que essas mulheres fazem é simplesmente alertar para o caráter insuportável de uma situação pela qual elas são afetadas de uma maneira muito corrente, muito cotidiana.
Fonte: ZeroHora/Fernanda Grabauska em 15/11/2015 (fernanda.grabauska@zerohora.com.br)