Translate this Page




ONLINE
9





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


A Religião e os Intelectuais
A Religião e os Intelectuais

AINDA ENTRE NÓS

 

Dois ensaios atestam que, de uma forma ou de outra, Deus permanece essencial para a cultura moderna – pouco importa quanto protestem os intelectuais.

 

A morte de Deus vem sendo declarada e desejada há mais de um século. Mesmo assim, o Todo-Poderoso insiste em frustrar seus obituaristas, e a religião continua sendo uma força determinante. Esse é o fenômeno que Terry Eagleton, crítico literário inglês de background marxista, busca analisar em A MORTE DE DEUS NA CULTURA. A narrativa começa no Iluminismo, o primeiro momento em que a religião foi questionada em peso pela classe intelectual. No lugar da fé, os iluministas propunham a razão humana como guia da política e da sociedade. Alguns, como Voltaire, buscaram limitar seu pensamento crítico aos círculos intelectuais, temerosos das possíveis consequências sociais do fim da religião. Mas o fato é que, mesmo que quisessem, teriam sido incapazes de aboli-la. O deísmo distante da maioria dos iluministas e o ateísmo racionalista de outros eram filosofias por demais frias e cerebrais para substituir a fé no coração do povo.

 

O Iluminismo deu o golpe de morte na pretensão de objetividade filosófica da religião, mas foi incapaz de legar-lhe um substituto à altura. Os movimentos que se seguiram foram, na visão de Eagleton, tentativas de encontrar esse substituto, todas malsucedidas. O idealismo alemão buscou atribuir à cultura o papel de estofo existencial anteriormente desempenhado pela fé. O romantismo, o culto ao sentimento e à natureza, o nacionalismo, certo conservadorismo, o modernismo, o pós-modernismo: nenhum desses aspirantes foi capaz de conjugar apelos simultâneos ao intelecto, à vontade e ao sentimento da mesma forma que a fé.

 

Em uma leitura densa mas de estilo fluído, o livro de Eagleton consegue sintetizar uma vasta gama de autores de diferentes línguas e linhagens, amarrados em uma narrativa comum. De todos os pensadores, a inspiração que mais claramente guia a obra é o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, o primeiro ateu de verdade – ou, pelo menos, o primeiro a percebe que, embora a humanidade houvesse matado Deus enquanto objeto racionalmente válido, ela tentava ainda sustentar as ilusões que dependiam desse fundamento absoluto: a moral, a metafísica, até mesmo a gramática. Somos ateus, mas nosso modo de vida pressupõe Deus. Eagleton transfere esse insight para a história das ideias, numa sucessão constante de substitutos fracassados de Deus que culmina nos dias atuais.

 

O fim da Guerra Fria pareceu dar início a um novo e último capítulo da história humana, com a ausência de crenças e a acomodação a um mundo desprovido de sentido, na normalidade ditada pelo mercado global. Contra esse mundo desencantado e cansado, os atentados de 11 de setembro de 2001 teriam vindo lançar a metafísica de volta ao centro das atenções. É justamente na passagem da história das ideias para a história de fato que A MORTE DE DEUS NA CULTURA dá um passo em falso. Eagleton fala exclusivamente de intelectuais e suas obras, sem jamais tocar nos processos sociais ou mesmo na cultura popular, que são os palcos nos quais a religião se move. E se os intelectuais estiveram não no comando, mas completamente descolados dos rumos da sociedade? Não há, no livro, preocupação com a realidade empírica da religião. Um arremedo de explicação social é dado sem muito rigor. Sai-se com a ideia de que o mundo do “capitalismo tardio” tende para uma pequena elite ateia e uma massa miserável que caminha para o fundamentalismo. Não seria o renascimento da religião, contudo, um fenômeno da nova classe média global?

 

Nesse contexto, O EVANGELHO SEGUNDO A FILOSOFIA, do ensaísta gaúcho Aurélio Schommer, é justamente um exemplo contrário à tese de Eagleton: nem ateísmo desencantado, nem fundamentalismo. Esse leve tratado busca articular criativamente elementos do cristianismo ocidental a conceitos e discussões da filosofia. O título pode enganar. Não se trata nem de reconstruir o que seria a filosofia de Jesus Cristo nem de oferecer uma defesa filosófica do cristianismo. Não é uma obra de apologética, mesmo porque Schommer – que não crê na alma nem em milagres, e faz um elogio do prazer – seria um fiel bastante heterodoxo. Trata-se antes de usar o cristianismo como fonte de insights e questionamentos para a formulação de uma visão de mundo pessoal.

 

A maioria das referências é a pensadores anteriores ao Iluminismo, mostrando como, mesmo antes de haver uma campanha organizada contra o poder da religião, o espírito humano jamais se deixou anular sob o peso de uma ortodoxia espiritual. Heráclito, Luciano de Samósata, Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal, Leibniz, e também figuras mais obscuras do cristianismo, como o gnóstico Marcião e o reformador Thomas Müntzer: todos ajudam, por vias positivas ou negativas, a explorar a condição humana.

 

A filosofia de que fala o título não é a velha disciplina intelectual para chegar à verdade por meios estritamente racionais. É a filosofia como um modo de vida: uma atitude inquisitiva e aberta para o universo, inclusive para o mundo da fé e dos valores. No final das contas, Schommer sublinha, na prática, aquilo que Eagleton apontara em sua formulação teórica: o grande diferencial da religião é ter algo a oferecer tanto às grandes mentes quanto às massas. Ao contrário do intelectual inglês, o autor brasileiro sugere que a religião ainda é capaz de desempenhar esse papel. Gostemos ou não dele, Deus está aqui para ficar.

 

A MORTE DE DEUS NA CULTURA de Terry Eagleton (tradução de Clóvis Marques; Record; 224 páginas)

 

O EVANGELHO SEGUNDO A FILOSOFIA, de Aurélio Schommer (Record; 308 páginas).

 

Fonte: Revista Veja/Joel Pinheiro da Fonseca em 22/06/2016.