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Morfologia: Os Gêneros e a Poética Clássica
Morfologia: Os Gêneros e a Poética Clássica

 

Morfologia dos Gêneros Literários: da Visão Romântica à Contemporânea

Os gêneros e a poética clássica

 

Vimos como Platão, em A República, foi o primeiro a nos legar um estudo sobre a questão dos gêneros, reconhecendo a poesia como poesia mimética, o que, segundo a sua Teoria das Ideias, levaria o Homem à ignorância e à desmedida, afastando-o a três graus da verdade.

 

No terceiro livro de A República, Platão determina três categorias literárias possíveis a partir das interações entre o poeta e as personagens.

 

Assim, a integração entre o poeta e as personagens geraria:

 

Gênero Dramático

Aristóteles aponta o gênero dramático como poesia produzida para ser encenada. A história é contada por atores que usam suas ações, gestos e voz para desenvolvê-la.

 

O gênero dramático englobaria a tragédia e a comédia.

 

A tragédia conta a história de um homem de caráter elevado e posto pelo destino em uma situação de grande infortúnio, por um erro inconsciente.

 

A comédia imitaria homens de caráter inferior. Através do riso e da indicação do que seria o ridículo, a comédia apresentava a sua condição moralizante.

 

Poesia ditirâmbica

Ramo da poesia lírica, acompanhada por cantos, a poesia ditirâmbica celebrava os prazeres da mesa e da vida. Mais tarde, segundo Aristóteles, seria um dos elementos a dar origem à tragédia.

 

A poesia lírica expressa os sentimentos, as emoções e as sensações do poeta. Por isso, afirma-se o seu caráter confessional. Na Antiguidade, o poeta declamava.   

 

Poesia épica e outras formas de poesia

A poesia épica é narrativa. Conta a história dos grandes feitos heróicos de um povo, na forma de um poema dividido em cantos. Cada canto narra um episódio, que se integra aos demais, formando uma unidade de ação.

 

O herói épico é um indivíduo de qualidades excepcionais e caráter elevado.  Aceita o seu destino. Sua vida só tem sentido dentro da coletividade.

 

A epopeia (narrativa épica) conta com a presença do sobrenatural, principalmente, através da intervenção dos deuses na vida dos personagens e resgata lendas e histórias, mesclando-as à criatividade do autor.

 

O narrador da epopeia é o chamado narrador clássico: com foco narrativo em terceira pessoa, distanciado e observador, além de onisciente.

 

Aristóteles, discípulo de Platão, esforçou-se em ordenar e classificar não só a poesia, como outros elementos, conceitos e ideias do mundo:

a retórica / a lógica /a política / a natureza etc.

 

No que toca especificamente ao discurso poético, escreveu o seu tratado, Arte Poética, que não sobreviveu integralmente ao tempo.

 

As partes que alcançaram o nosso tempo revelam uma reflexão consistente e sistematizada acerca da poesia, principalmente da tragédia e da epopeia, embora também cite a comédia e formas líricas como a poesia ditirâmbica, a citarística (poesia declamada ao som da cítara) e a aulética (poesia declamada ao som da flauta) – que não são objetos de uma análise maior na parte de Arte Poética conhecida por nós.

 

Aristóteles questionou a teoria das ideias de Platão. ¨

 

Discordava da existência de um mundo bipartido em ideal e sensível.

 

Ao superar esta ideia, passa a superar também a própria concepção platônica de poesia mimética.

 

Para Aristóteles, a poesia não afastava o Homem da verdade, ao contrário: a poesia como mimese, como imitação do mundo, levava o Homem ao conhecimento, pois o imitar seria inerente a ele, em seu processo de cognição do mundo.

 

Poesia mimética = Homem ao conhecimento

Aristóteles resgata a poesia da condição de indigna e confere-lhe grandeza em sua análise.

 

Ele mostra a mimese desligada da tarefa de representar a realidade externa.

 

Como vimos, Aristóteles funda a mimese na possibilidade. Isto é, ao imitar, o poeta não precisa falar do que realmente tenha acontecido, mas do que poderia acontecer, como disse o filósofo:

 

“o poeta fala das coisas não como são, mas como poderiam ser”.

 

É o critério da mimese o eixo de organização da classificação dos gêneros literários, que se dividem de acordo:

 

Com o meio de realização da mimese = Ou seja, o modo como o gênero imita, de acordo com o emprego do ritmo, o verso, a melodia. Para Aristóteles, as distintas formas dos gêneros literários eram conexas aos seus conteúdos. Por exemplo, a epopeia, por narrar fatos grandiosos, também haveria de ser narrada em uma linguagem poética magnânima, elaborada.

 

Com o que é imitado = Ou seja, o objeto da mimese: quais tipos de homens são imitados, por exemplo.

 

Com o modo de imitar = O que pode ser percebido pela voz que fala no gênero. Na epopeia, há um processo narrativo – quem fala é o narrador, que conta uma história, obviamente. No drama, tanto trágico quanto cômico, a história não é narrada, mas representada pelas ações e falas dos atores. Lembre-se: drama = ação. O drama é uma encenação, ele põe em cena a ação. Poderíamos acrescentar: na poesia lírica, quem fala é o eu lírico, a voz que expressa, no poema, as suas emoções e sentimentos.

 

O filósofo romano Horácio viveu durante o século I A.C. na Roma antiga. Em suas reflexões sobre a arte poética, desenvolvidas na “Carta aos Pisões”, defende a poesia como um instrumento de educação e de moralização do Homem. Mas não um instrumento qualquer: segundo Horácio, a poesia era docere cum delectare, ou seja, educação com prazer.

 

Aut. prodesse volunt aut delectare poetae, aut simul et iucunda et idonea dicere vitae. 

A frase de Horácio significa: os poetas querem ser úteis ou deleitarem-se, ou ainda dizer coisas, ao mesmo tempo, agradáveis e úteis para a vida.

 

Os conhecidos versos de Horácio, que assinalam com finalidade a poesia aut prodesse aut delectare, não implicam um conceito de poesia autônoma, de uma poesia exclusivamente fiel a valores poéticos, ao lado de uma poesia pedagógica.

 

O prazer, o dulce referido por Horácio e mencionado por uma longa tradição literária europeia de raiz horaciana, conduz, antes, a uma concepção hedonista da poesia, o que constitui ainda um meio de tornar dependente, e quantas vezes de subalternizar lastimavelmente, a obra poética.

SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Coimbra: Almedina, 2000.

 

Horácio também refletiu sobre os gêneros literários. Suas ideias concordavam com os preceitos de adequação entre forma e conteúdo defendidos por Aristóteles, em sua Arte Poética. Para Horácio, só mereceriam o título de poeta aqueles que em suas criações escolhessem a forma (ritmo, métrica) e o tom corretos aos gêneros que escrevessem. Isto significa que uma comédia fosse escrita usando a métrica empregada tradicionalmente na tragédia, como diz Angélica Soares, em seu livro Gêneros Literários.

 

A defesa de Aristóteles e, depois, de Horácio de uma forma e um tom adequado a cada gênero continuará por muito tempo, como veremos.

 

Os gêneros literários: da Idade Média ao século XVIII

A tripartição clássica dos gêneros literários – poesia lírica, épica e dramática (tragédia e comédia), ganhou releituras durante o período medieval.

 

Uma das principais foi estabelecida pelo poeta florentino Dante Alighieri. Dante categorizou a epopeia e a tragédia como estilos nobres; a comédia como um estilo médio; e a elegia (poema lírico, de tom pessimista, de luto e melancolia) como um estilo humilde.

 

Outros gêneros surgiram e foram classificados durante a Idade Média, como a poesia trovadoresca e as novelas de cavalaria.

  

A defesa da poética classicista, entretanto, não foi unanimidade no século XVII. Houve, no final desse século, um embate conhecido como “querela entre os antigos e os modernos”.

 

Os chamados modernos seriam autores maneiristas e barrocos que se contrapunham à estética classicista, pois compreendiam os gêneros literários como uma construção histórica e, portanto, passível de admitir novos modos de produção.

 

Os gêneros literários no Romantismo:

No final do século XVIII, surgiu um movimento alemão denominado sturm und drang, em português, tempestade e ímpeto.

 

Esse movimento contrapôs-se ao pensamento clássico e questionou a divisão rígida dos gêneros literários.

 

Tal questionamento relacionava-se a uma nova percepção:

 

A percepção do poeta como um ser especial, como um gênio, capaz de exercitar a sua arte de um modo pessoal e inovador.

 

A individualidade e a independência do autor-gênio quebram a classificação rígida dos gêneros e abre espaço para a liberdade de criação.

 

A obra de arte passa a ser vista como uma expressão em múltiplas formas, que não se submeteria a normas pré-estabelecidas e a limites determinados por convenções.

 

Friedrich Schlegel 

Ainda no fim do século XVIII, o poeta pré-romântico Friedrich Schlegel escreveu um tratado de poética, no qual recuperou a tripartição clássica dos gêneros literários.

 

Neste e em outros estudos posteriores, Schlegel postula uma classificação rígida entre os gêneros, não admitindo o hibridismo. Tal classificação dava-se por critérios de subjetividade/objetividade.

 

O poeta compreendia a lírica como uma poesia subjetiva, em oposição à objetividade da épica. O drama seria uma espécie de síntese dos dois gêneros, pois apresentaria tanto a subjetividade quanto a objetividade.

 

Victor Hugo

Já no Romantismo, surgiram mudanças muito profundas acerca das questões de gêneros, que concordavam com a reivindicação pela liberdade criativa, tão cara ao momento.

 

O escritor romântico Victor Hugo escreveu um texto chamado “Do grotesco e do sublime”, prefácio ao livro Cromwell. Nele, defendia uma nova proposta sobre os gêneros literários.

 

Hugo afirmou que a vida não se apresentava de modo compartimentado: nela estariam misturados o grotesco e o sublime, a dor e o prazer... Portanto, a arte também deveria assumir-se como híbrida.

 

Notre-Dame de Paris, romance posteriormente conhecido como O corcunda de Notre-Dame por conta de traduções, foi publicado por Victor Hugo, em 1831. Nesse romance, Hugo representa as tensões entre os fracassos e as elevações da alma humana, em uma leitura da Paris medieval. Sua personagem mais famosa, o corcunda Quasímodo, entretanto, não é o protagonista. Apesar disso, representa a simbiose entre o sublime e o grotesco.

 

A partir dessa ideia, Hugo propõe um novo gênero literário, o drama, que mesclaria elementos da tragédia e da comédia. O drama romântico comportaria elementos tragicômicos, líricos e épicos. A fusão desses elementos proporcionaria a exposição, na literatura, das grandezas e dos limites humanos.

 

O hibridismo dos gêneros literários permaneceu e muitas obras passaram (e passam) a apresentar uma mistura de índices, como textos narrativos com elementos dramáticos e líricos, por exemplo.

 

A aceitação do hibridismo será um elemento relevante para a inserção do romance no rol dos gêneros literários e demonstra como estes estão em permanente processo de transformação. A partir do século XIX, cada vez mais torna-se comum encontrar elementos de gêneros literários diversos em uma mesma obra.

 

O romance é um gênero literário e não diz respeito a um estilo literário específico. Há romances românticos, realistas, modernistas, pós-modernistas. Como gênero literário, surge no fim do século XVIII. Trata-se de uma narrativa extensa, escrita em forma de prosa e dividida em capítulos. Mescla elementos épicos e líricos, sendo um gênero híbrido por excelência. Segundo Jacinto do Prado Coelho, em seu Dicionário de Literatura Portuguesa e Brasileira, “O romance configura um mundo de personagens mais denso e complexo, aproxima-nos do acontecer cotidiano, e daí um ritmo temporal mais lento“.

 

Teoria naturalista e evolucionista dos gêneros literários:

A partir do final do século XIX, surgiram teorias sobre os gêneros literários, apoiadas nas filosofias materialistas, especialmente na corrente naturalista e na evolucionista.

 

Tais correntes defendiam a analogia entre os gêneros literários e os organismos vivos. Assim, os gêneros literários passariam por uma espécie de ciclo vital, com o seu nascimento, auge (maturidade), envelhecimento e morte, dando lugar ao surgimento de outros gêneros.

 

Como ocorreria a um ser humano, as obras de arte passariam por um processo evolutivo, sofrendo transformações, nos moldes propostos pelo evolucionismo de Darwin.

 

Benedetto Croce

Como oposição a essa visão materialista dos gêneros, surgiram discussões pautadas em correntes de pensamento espiritualistas.

 

Um desses pensadores foi Benedetto Croce, que se contrapôs às teorias materialistas ao afirmar que a arte não é científica, mas intuitiva. Como fruto da intuição, a obra não poderia ser categorizada de forma rígida, por conta de critérios de composição, uma vez que é expressão subjetiva e livre.

 

Propostas do século XX

Ao pensarem sobre os gêneros literários, os formalistas russos retomam a ideia dos gêneros literários como instâncias em mutação contínua. Atentaram para a condição histórica dos gêneros literários, o que impediria qualquer categorização estanque.

 

Roman Jakobson percebe os gêneros literários através de sua teoria das funções da linguagem. A linguagem poética é dominante nos três gêneros. Além desse predomínio, poderíamos identificar:

 

Gênero lírico = Função emotiva (foco na primeira pessoa).

Gênero épico = Função conativa (foco na 2ª pessoa).

Gênero Dramático = Função referencial (foco na 3ª pessoa).

 

Mikhail Bakhtin, pensador russo, postulou a caracterização formal como insuficiente para a classificação dos gêneros, pois o contexto de recepção também seria um elemento importante. Veja:

 

Em primeiro lugar, a obra é orientada para o ouvinte/receptor e para as condições definidas de execução e percepção. Em segundo lugar, a obra é orientada na vida, a partir de dentro, poder-se-ia dizer, por seu conteúdo temático. Cada gênero possui sua própria orientação na vida, com referência a seus eventos, problemas etc. (BAKHTIN, apud LIMA, 2002).

 

Posteriormente, o crítico canadense Northrop Frye sugeriu a existência de quatro gêneros literários fundamentais: o drama, o épos, a lírica e a ficção. A caracterização de cada gênero conecta-se à maneira como o autor apresentaria a obra e os modos de organização da mimese. Veja o quadro:

 

Drama = Relação direta entre personagens e público; o autor está oculto.

Mimese externa.

Épos = Narrativa episódica

O autor relaciona-se com o leitor; as personagens estão ocultas.

Escrita assertiva.

Lírica = A apresentação acontece pela relação “Eu-tu”

Mimese interna.

Ficção = Narrativa contínua.

 

Outra análise fundamental para a discussão dos gêneros literários foi proposta por Emil Staiger. Ele defende o hibridismo dos gêneros literários e demonstra como um texto pode conter características líricas, épicas e/ou dramáticas, independente do gênero ao qual pertença. Essa mescla pode acontecer a partir das mais variadas associações, de modo óbvio ou mais implícito. Para Staiger, não existem categorias literárias absolutamente puras.

 

Na década de 70, a Estética da Recepção empreendeu estudos igualmente importantes sobre os gêneros literários.

 

Nesses estudos, o gênero aparece como indissociavelmente conexo aos modos como a obra literária é percebida pelo leitor. Esta percepção é marcada pelo conhecimento do leitor e pelo horizonte de expectativas que guiará a sua leitura.

 

Como a leitura da obra depende desse conjunto de percepções, a compreensão sobre um gênero literário sempre será relativa e histórica, pois se modifica de acordo com o modo como as obras são produzidas e recebidas pelo público leitor.

 

É importante lembrar: modernamente, os gêneros literários não podem ser designados a partir de critérios estritamente relacionados à sua forma e à sua configuração.

 

A recepção do leitor é um dado fundamental na compreensão dos gêneros, como lembrou o crítico Luiz Costa Lima, em seu livro Teoria da Literatura em suas fontes.

 

Em vez, portanto, de tomar-se o gênero como uma entidade fechada, i.e., com um número determinado de traços, de que se pode ter consciência e a partir dos quais são possíveis julgamentos de valor, o gênero apresenta uma junção instável de marcas, nunca plenamente conscientes, que orientam a leitura e produção – sem que, entretanto se presuma que as marcas orientadoras sejam as mesmas. (LIMA,2002).

 

Os gêneros literários estão em permanente transformação.

Surgem, desaparecem, mesclam-se e transformam-se. Conheça a obra híbrida “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto.

 

Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poema dramático, com traços líricos e épicos. Disponível em: <http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/pdf/oliteraria/219.pdf>.

 

Veja outro exemplo de obra híbrida,“A morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade, poema lírico, com traços dramáticos.

 

Há pouco leite no país, é preciso entregá-lo cedo. Há muita sede no país, é preciso entregá-lo cedo. Há no país uma legenda, que ladrão se mata com tiro. Então o moço que é leiteiro de madrugada com sua lata sai correndo e distribuindo leite bom para gente ruim. Sua lata, suas garrafas e seus sapatos de borracha vão dizendo aos homens no sono que alguém acordou cedinho e veio do último subúrbio trazer o leite mais frio e mais alvo da melhor vaca para todos criarem força na luta brava da cidade.

 

Na mão a garrafa branca não tem tempo de dizer as coisas que lhe atribuo nem o moço leiteiro ignaro, morados na Rua Namur, empregado no entreposto, com 21 anos de idade, sabe lá o que seja impulso de humana compreensão. E já que tem pressa, o corpo vai deixando à beira das casas uma apenas mercadoria.

 

E como a porta dos fundos também escondesse gente que aspira ao pouco de leite disponível em nosso tempo, avancemos por esse beco, peguemos o corredor, depositemos o litro...

 

Sem fazer barulho, é claro, que barulho nada resolve.

 

Meu leiteiro tão sutil de passo maneiro e leve, antes desliza que marcha. É certo que algum rumor sempre se faz: passo errado, vaso de flor no caminho, cão latindo por princípio, ou um gato quizilento. E há sempre um senhor que acorda, resmunga e torna a dormir.

 

Mas este acordou em pânico (ladrões infestam o bairro), não quis saber de mais nada.

 

O revólver da gaveta saltou para sua mão. Ladrão? se pega com tiro.

 

Os tiros na madrugada liquidaram meu leiteiro. Se era noivo, se era virgem, se era alegre, se era bom, não sei, é tarde para saber.

 

Mas o homem perdeu o sono de todo, e foge pra rua. Meu Deus, matei um inocente. Bala que mata gatuno também serve pra furtar a vida de nosso irmão. Quem quiser que chame médico, polícia não bota a mão neste filho de meu pai. Está salva a propriedade.

 

A noite geral prossegue, a manhã custa a chegar, mas o leiteiro estatelado, ao relento, perdeu a pressa que tinha.

 

Da garrafa estilhaçada, no ladrilho já sereno escorre uma coisa espessa que é leite, sangue... não sei. Por entre objetos confusos, mal redimidos da noite, duas cores se procuram, suavemente se tocam, amorosamente se enlaçam, formando um terceiro tom a que chamamos aurora.

 

Uma obra pode apresentar elementos de gêneros diferentes. É muito raro, aliás, encontrarmos obras com características de um só gênero.

 

A designação de uma obra não se dá a priori, mas depende dos processos de recepção aos quais é submetida.

 

O caso do vestido

(Carlos Drummond de Andrade)

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe, 
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós, 

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou (...)