A poética de Luís de Camões
RENASCIMENTO E CLASSICISMO EM PORTUGAL
O contexto renascentista
Para falarmos sobre o Classicismo em Portugal, é necessário, antes, abordamos um tema já discutido na segunda aula: o Renascimento. O período renascentista português pode ser localizado entre os séculos V e XVI.
As principais expressões literárias do momento deram-se na historiografia, na prosa doutrinária - escrita por reis e nobres, visando à formação integral do homem fidalgo e na poesia.
A poesia portuguesa, durante o momento renascentista, passou por uma modificação extrema: a ruptura com o ideal trovadoresco, isto é, a separação entre letra e música.
Além disso, há a inserção de novos temas líricos, que resgatados da cultura clássica greco-romana, seguindo um movimento surgido na Itália.
Essas inovações ocorrem dentro do contexto da expansão marítima e do fortalecimento da classe burguesa em Portugal, que enriquece enormemente. É legítimo, inclusive, afirmar que o Renascimento ocorreu no ápice do poder e da riqueza material do país.
Esse enriquecimento possibilitou a constituição de um novo público intelectual e a ruptura com o domínio cultural da Igreja Católica.
É formada uma classe de jovens cujos estudos laicos afastam-se da escolástica e abrem espaço ao resgate e à valorização do pensamento humanista e da visão de mundo clássica, vista como padrão estético e moral, entretanto, não ocorre o predomínio absoluto do Humanismo em Portugal.
Ao contrário, os portugueses do século XV assistiram a uma grande crise de valores, fruto da tensão entre a nova forma de perceber o mundo e os resquícios de um mundo medieval que entrava em declínio. Desse embate nasce o que seria chamado de Fusionismo.
O Fusionismo é a fusão entre o pensamento religioso medieval e o pensamento antropocêntrico do Humanismo, de modo a mesclar os elementos herdados do Cristianismo aos oriundos da cultura clássica greco-romana.
O Antropocentrismo português tendeu a uma fusão com certos valores ainda resistentes do universo medieval, de modo que não é legítimo afirmar o seu caráter antirreligioso.
Apesar disso, há a ciência de que surge um novo Homem, que assiste a profundas transformações, como as grandes navegações, a invenção da imprensa e a emergência do pensamento racionalista, ainda que este tivesse em tensão com resquícios do teocentrismo, como dissemos.
O novo Homem era identificado com a ambição e o lucro, ideais tão caros à burguesia. É um Homem que redimensiona os seus conhecimentos sobre o mundo e volta-se para a razão e os prazeres, ciente da brevidade da vida.
Elementos específicos do Humanismo português
– Religiosidade
– Surgimento de um novo Home
Profundas transformações
– Grandes navegações
– Invenção da impressa
Elementos da poesia renascentista portuguesa
Primeiras sementes de uma consciência individual na poesia portuguesa.
O eu-lírico fala sobre questões subjetivas, revelando a percepção e o pensamento sobre a existência individual
É nesse momento, justamente, para e sobre esse Homem que surgem as primeiras sementes de uma consciência individual na poesia portuguesa. São poemas nos quais o eu lírico fala sobre questões subjetivas, revelando a percepção e o pensamento sobre a existência individual. Como exemplo, podemos citar o poema Vilancete seu, de Bernadim Ribeiro:
“Vilancete seu” (Bernardim Ribeiro)
Antre mim mesmo e mim
Nam sei que s´alevantou
Que tam meu imigo sou
Uns tempos com grand´engano
Vivi eu mesmo comigo;
Agora no mor perigo
Se me descobre o mor dano
Caro custa um desengano
E, pois m´este nem matou,
Quam caro que me custou!
De mim me sou feito alheo;
Antr´o cuidado e cuidado
Está um mal derramado
Que por mal grande me veo
Nova dor, novo receo
Foi este que tomou:
Assi me tem, assim estou.
No poema, podemos perceber o pensamento do eu lírico sobre a sua condição subjetiva, refletida em um tema que será frequente, também, em outros poetas da época, como Sá de Miranda: o alheamento de si.
Foi, inclusive, Sá de Miranda considerado o precursor de uma lírica renascentista em Portugal, em 1527. Após uma viagem à Itália, o poeta trouxe à sua terra natal o novo fazer poético, caracterizado, principalmente pela adoção de uma nova forma métrica, a chamada “medida nova”, isto é, pelo emprego dos versos decassílabos.
Com a adoção da medida nova, as redondilhas, até então predominantes na lírica escrita portuguesa, passaram a ser conhecidas como “medida velha”.
Apesar da abertura para novidades como a adoção da medida nova, a poesia portuguesa não abandona todo os fazeres poéticos medievais. Assim como houve o fusionismo no pensamento português na época, houve a continuidade de aspectos da poesia medieval que, muitas vezes, apareciam de modo mesclado a elementos mais modernos, oriundos das propostas poéticas italianas e, até mesmo, espanholas.
Além de Sá de Miranda e Bernadim Ribeiro, outros escritores destacaram-se no período, como Antônio Ferreira e Diogo Bernardes. Mas, dentre eles, o mais importante, sem dúvida, foi Luís de Camões.
Conheça um pouco sobre a obra de Luís de Camões, considerado um dos maiores poetas de Portugal e do mundo.
A poesia lírica tradicional camoniana
Diálogo com as produções medievais
A poesia de Luís de Camões pode ser dividida em duas instâncias: lírica e épica. A sua produção lírica, por sua vez, se reparte duplamente, em uma lírica tradicional e uma lírica erudita. O lirismo tradicional camoniano dialoga com as produções medievais, especialmente em seus aspectos populares, como o emprego da medida velha e de temáticas relacionadas à vida no campo.
Além disso, recupera formas poéticas típicas da passagem do medievo para a Idade Moderna, como as esparsas (poemas de temática amorosa, geralmente com única estrofe e seis sílabas poéticas) e os vilancetes (poemas com um mote (motivo) e voltas, ou seja, glosas, usando a medida velha).
Como exemplo de um poema lírico tradicional, em Camões, temos “Perdigão perdeu a pena”:
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha
Voltas
Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que não lhe venha.
Quis voar a uma alta torre
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha
No poema, podemos perceber que o mote é alheio, ou seja, não foi criado pelo poeta, o que era comum, pois o mesmo poderia apropriar-se de um dito popular, por exemplo. A parte das voltas, como convinha aos vilancetes, apresenta estrofes de sete versos. O último verso pode recuperar os versos do mote, como ocorre aqui.
Ao usar a forma do vilancete e a medida velha, Camões revela a continuidade de elementos do universo poético medievo na poética renascentista, como referido. Entretanto, a forma poética medieval, em sua clave popular, tensiona-se com a presença de um jogo intelectualizado de contraposição de ideias. No poema, o pensamento sofisticado revela-se, ainda, no emprego ambíguo da palavra “pena”, como pluma e como castigo.
Além disso, o crítico literário Massaud Moisés demonstra a possibilidade de o perdigão ser uma figuração do próprio poeta, pois “pelo pensamento / Subiu a um alto lugar” (MOISÉS, 2004, p. 83). É importante ressaltar que, segundo o mesmo crítico, o jogo de ideias antitéticas presentes na poética camoniana já anunciaria uma sensibilidade conceptualista, que desabrocharia com força na poesia barroca. Outra manifestação da lírica tradicional camoniana é o poema Descalça vai pera a fonte:
Mote
Descalça vai pera a fonte
Leonor pela verdura;
Vai formosa, e não segura
Voltas
Leva na cabeça o pote,
O texto nas mãos de prata,
Cinta fina escarlata,
Sainho de chamalote,
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura,
Vai formosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado,
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta;
Chove nela graça tanta
Que dá graça à formosura,
Vai formosa, e não segura.
Aqui, podemos notar, do mesmo modo, a forte dicção popular, de inspiração medieval, presente no emprego da medida velha e da temática, próxima as das cantigas de amigo. Além disso, aqui permanece a tensão entre a simplicidade da poesia popular e o jogo de ideias mais sofisticado. Um outro ponto interessante são os elementos de comparação, que também serão importantes na poesia barroca, posteriormente.
A poesia lírica erudita camoniana
A poesia lírica erudita de Luís de Camões tem como base, principalmente a poesia italiana. Em termos de formas literárias, privilegiava o soneto. Do mesmo modo, a poesia camoniana apresentava-se como odes, écoglas, elegias, oitavas, tercetos e sextetos. A medida era a nova que, como vimos, empregava versos decassílabos.
A temática da lírica erudita camoniana versa sobre questões filosóficas e existenciais e revela um pensamento complexo e tenso. Muito se pensa sobre o desassossego, a inadequação e as contradições do mundo, como podemos perceber no poema Ao desconcerto do mundo.
Ao desconcerto do mundo”:
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
Com uma única exceção, o desconcerto é rompido: quando se trata do poeta que, com ironia, garante o tom jocoso de um poema filosófico, o que representa um mundo sem sentido e no qual o desejo afasta-se da concretização.
A ideia do desconcerto retorna no soneto Amor é um fogo que arde sem se ver, no qual será o amor o elemento paradoxal a ser discutido:
Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
A temática do paradoxo amoroso e da contradição entre o desejo e o amor são influências da poesia de Petrarca, que ressaltava as dores do querer.
É interessante perceber que, após demonstrar pelas metáforas as contradições do amor, o poema termina com uma pergunta e mantém a dúvida no leitor, afastando as certezas de um universo marcado pelas dúvidas e pela tensão de elementos antagônicos, elencados em uma sucessão de anáforas.
Esse jogo de tensões e paradoxos, como falamos, remeterá aos primeiros sinais de uma estética barroca, mais precisamente do Maneirismo.
1547, com o 1º rol de livros proibidos.
O Maneirismo em Camões pode ser percebido pela expressão privilegiada dos paradoxos sentimentais e de um mundo áporo e agônico. Em termos formais, o emprego da antítese e das inversões refletiria os aspectos contraditórios de um mundo cujos valores encontravam-se em crise.
Camões e o neoplatonismo
– Interesse renascentista na cultura clássica.
– Influência de Petrarca
– Representação da experiência amorosa, sobretudo.
– Figuração de um amor idealizado e que transcenderia o desejo carnal.
Características neoplatônicas na poesia de Camões
– A preexistência da alma
As almas, o demiurgo e o hiperurânio
– A lembrança e os sentidos
O mundo sensível e o mundo inteligível
Outra influência importante na poesia de Camões é a da filosofia neoplatônica, figurada também na poesia de Petrarca, especialmente na representação da experiência amorosa. A obra do poeta italiano, o amor por Laura, sua musa, mesmo após a morte da amada, cultivando a figuração de um amor idealizado e que transcenderia o desejo carnal.
Como exemplo da influência de Petrarca e do neoplatonismo na poesia camoniana, podemos citar o poema Transforma-se o amador na cousa amada:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura
Semideia,
Que, como o
acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia:
E o vivo e puro amor de que sou feito, Como a matéria simples, busca a forma.
Aqui se pode perceber a influência neoplatônica na idealização da amada, tecida pelo eu lírico. Este entra em simbiose com a imagem do objeto amoroso, que não sai de seu pensamento. Essa reflexão desperta a ideia de que nada mais tem a temer, pois a própria amada nele habita.
Todavia, o eu lírico não esgota a reflexão do poema em sua experiência, mas a amplia, investigando a condição do amor. Entretanto, a influência platônica apresenta o seu limite, pois o eu lírico não se conforma apenas com a idealização, demonstrando o anseio pela matéria, pelo amor carnal, ainda que contido, como convinha, aos padrões classicistas.
A poética de Luís de Camões – Parte II
Deste modo, a epopeia ganhou destaque na literatura classicista e, em Portugal, especialmente, a matéria épica ia ao encontro da urgência de cantar - e assim lançar à posteridade - as grandes conquistas vividas pelo país na era moderna.
Camões criou uma épica para esses tempos modernos, reelaborando vários aspectos das orientações da poética clássica sobre o discurso épico, como veremos.
A visão do homem em Os Lusíadas
Um dos principais vetores ideológicos para as mudanças implantadas por Camões no discurso épico foi o Fusionismo, que trazia à tona a dialética entre o imaginário cristão e a visão de mundo humanista.
O Fusionismo pode ser percebido em
Os Lusíadas a partir de aspectos tensionais, principalmente a tensão entre a obediência ao “princípio de modéstia” da convenção clássica e a autocelebração e o conflito entre o divino e o humano.
O princípio de modéstia é uma convenção da poética clássica e diz respeito ao silenciamento do autor sobre as suas qualidades, devendo este mostrar-se humilde e aquém do texto que apresentará. Assim, valoriza a matéria de seu poema, mostrando a sua incapacidade de expressar a grandiosidade do assunto.
O princípio de modéstia está atrelado à convenção da “causa externa”, na qual o poeta não atribui a si o exercício criativo, mas a uma causa exterior a ele, geralmente às musas.
O conflito entre o divino e o humano expressa-se de modo variado na narrativa, como na figuração dos deuses com sentimentos humanos, como a inveja e a paixão.
Outra representação desse conflito ocorre na figuração dos humanos como seres capazes de concretizar tarefas para além de sua capacidade e dotados de poder. Por outro lado, há um paradoxo entre esse poder humano e a sua condição inferior, como u.m “bicho homem”, pequeno e limitado diante do sofrimento e das guerras.
A tensão entre a celebração dos êxitos da expansão marítima, em suas aventuras e glórias, e a recusa da inversão de valores medievais, como a honra e a prudência, trazidas pelo contexto dos descobrimentos é outra face do conflito entre o divino e o humano.
Em relação aos processos de expansão ultramarina portuguesa, o paradoxo de uma celebração que traz, ao mesmo tempo, o questionamento de suas consequências e da própria noção de glória é representado, principalmente, em uma personagem: o velho do restelo.
Essa personagem é um homem velho que permanece às margens do rio Tejo, questionando os impactos e desdobramentos das viagens ultramarinas.
Condena a viagem de Vasco da Gama que trará desgraças, além de deixar Portugal vulnerável ao inimigo espanhol.
"Mas um velho d'aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
C'um saber só de experiências feito,Que nós no mar ouvimos claramente,
Tais palavras tirou do experto peito:”
(Canto IV, estrofes 94 a 104)
As palavras tiradas do “experto peito” são, na verdade, uma imprecação contra a febre das conquistas marítimas. Interessante notar o fato de seu saber ser somente “de experiências feito”, um saber empírico, mas ainda assim valorizado.
A inserção da personagem de “O velho do restelo” na narrativa é uma inovação importante trazida por Camões à épica, pois apresenta uma visão relativa do acontecimento histórico celebrado na epopeia.
A personagem questiona o conceito de glória trazido pelo descobrimento e mostra como todo aquele processo desorganiza os valores medievais de honra e trabalho, em nome da cobiça e da vaidade: “Ó glória de mandar, ó vã cobiça” (Canto IV, estrofe 95).
O aspecto paradoxal avança ainda no canto IV, no momento em que a personagem amaldiçoa o inventor da primeira embarcação e roga que os nautas sejam esquecidos e silenciados pelos poetas:"Ó maldito, o primeiro que no mundo
Nas ondas velas pôs em seco lenho,
Dino da eterna pena do profundo,
Se é justa a justa lei, que sigo e tenho!
Nunca juízo algum alto e profundo,
Nem cítara sonora, ou vivo engenho,
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória.
(Canto IV, estrofe 102)
O paradoxo óbvio de condenar o canto e a memória das expedições em uma obra que, justamente, comemora os feitos dos argonautas lusos é somente uma das contradições da narrativa. Tal contradição, entretanto, deve ser vista como uma inovação extremamente rica, pois põe em xeque a própria matéria épica, em consonância com a crise de valores do mundo em que o poeta vivia.
Temporalidade e narrativa
Na obra, o tempo da narração difere do tempo da narrativa e é possível estabelecer uma analogia entre o pensamento fusionista e a representação temporal na narrativa, pois assim como existe a tensão entre os valores medievais e humanistas no pensamento, há uma temporalidade vária que congrega o passado e o tempo coevo a Camões, a Época Moderna.
O passado é figurado pela narração da história de Portugal; o presente, pela expedição de Vasco da Gama à Índia.
Destarte, podemos considerar a presença de outra esfera temporal: o futuro, presente nas profecias.
É importante lembrar que a profecia é um aspecto importante da épica, previsto pela convenção clássica, e alude à sua faceta maravilhosa – no sentido de sobrenatural.
Destarte, as profecias ligam-se à ideia de um destino português marcado pela fé. Mas, contraditoriamente, as intervenções do narrador opõem-se às profecias e revelam a mente renascentista, preocupada com as mudanças ocorridas no mundo que, no entender do poeta, sempre levam ao pior e catalisam o “desconcerto do mundo”, do mesmo modo como revelam os seus sonetos. Essas duas visões paradoxais revelam a contradição do fusionismo.
Outro ponto importante sobre as profecias na obra é o fato de referirem-se a acontecimentos que já haviam ocorrido, no momento da escrita da narrativa. Leia uma das profecias da obra, na qual Dom Manuel, em uma visão, vê o rio Ganges revelando que a conquista das Índias se dará de modo violento:
"Eu sou o ilustre Ganges, que na terra Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo Rei que, nesta serra Que vês, seu nascimento tem primeiro.
Custar-te-emos contudo dura guerra; Mas insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio, A quantas gentes vês, porás o freio."-
(Canto IV, estrofe 74)
http://pt.wikipedia.org/wiki/In_medias_res
Assim, a narrativa quebra a ordem linear – início, meio e fim. Inicia-se a narração no meio da história, já com Vasco da Gama em alto-mar.
Depois, volta-se para a narração dos episódios mais relevantes da história portuguesa para depois retornar à viagem de Vasco da Gama.
A narrativa é então retomada e apresenta, por vezes, digressões sobre o passado ou sobre o futuro.
OS LUSÍADAS
A estrutura de Os Lusíadas
Segue os preceitos formais clássicos
Composta por dez cantos, com estrofes de oito versos, cuja métrica é decassílaba.
O esquema de rimas vem a ser: ABABABC.
Cinco partes
Camões respeitou a tradição épica, seguindo os modelos de Homero e Virgílio, e inseriu as cinco partes em sua obra.
Na proposição, expõe o tema principal, a viagem de Vasco da Gama até as Índias. Depois, invoca as Tágides, as ninfas do rio Tejo e dedica o poema a Dom Sebastião, iniciando, posteriormente, a narrativa em si.
A questão do herói em Os Lusíadas
Na poesia épica clássica, o herói representa a grandeza de seu povo. É uma personagem com características excepcionais, de caráter e moral elevados.
O herói épico aceita o seu destino e sacrifica os seus desejos em prol do coletivo, mas não há, na antiguidade clássica, a consciência do indivíduo.
Segundo o crítico literário António Saraiva (1999), não se destaca na narrativa um herói específico, pois o próprio povo português vem a ser o protagonista.
Portanto, embora destaque-se na obra a personagem Vasco da Gama e sejam exaltados o seu heroísmo, a sua liderança e a sua coragem, na verdade pode-se afirmar que a figura do herói está além desse navegante português, assumindo uma dimensão coletiva.
Na obra, esta dimensão é celebrada logo no Canto I, quando o narrador refere-se às "armas e os barões assinalados":
As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram
Na estrofe, o termo “barões” não se refere a nobres, mas a varões, ou seja, aos homens corajosos que levariam Portugal a um império tão grandioso quanto os maiores da antiguidade.
Celebra, portanto, o coletivo, o universo luso cujos filhos são capazes de ousar passar pelos “mares nunca de antes navegados” e de passar para “além da Taprobana”, a região do atual Sri-Lanka.
A presença da mitologia na narrativa
A mescla entre a mitologia e os acontecimentos históricos é uma marca da matéria épica.
Em Os Lusíadas, o fantástico da mitologia articula-se ao aspecto referencial do discurso histórico.
A obediência à convenção clássica, soma-se o fato, percebido pela crítica literária Cleonice Berardinelli, em Estudos Camonianos, de a mitologia funcionar "como elemento estruturador e decorativo indispensável da mentalidade da época".
Para António Saraiva, em Introdução à Literatura Portuguesa, a mitologia em Os Lusíadas tem um papel fundamental: o de organizar a unidade de conjunto na narrativa. Para Saraiva, sem a fábula mitológica, a obra seria apenas uma coletânea de episódios desconexos entre si.
A mescla entre os elementos mitológicos e a matéria histórica pode ser observada nas ações paralelas dos deuses e dos nautas e no emprego do recurso homérico do deus ex-machina.
Deus ex-machina é um recurso narrativo que diz respeito à resolução de uma situação pela interferência dos deuses na situação.
Em Os Lusíadas, o elemento catalisador da narrativa é um concílio dos deuses que deve decidir o destino de Portugal.
Baco e Netuno resolvem criar empecilhos para a viagem. Baco, por temer a difusão da fé cristã e a supremacia de Portugal perante os antigos romanos. Netuno, por temer perder o controle dos mares.
Porém, é decidido que Portugal receberá o seu fado: ser um grande império.
Os navegantes recebem a proteção de Vênus e Marte e, após a chegada heroica às Índias, são recompensados com a ida à Ilha dos Amores.
Repare que a proteção venusiana e marciana pode ser tomada como alegorias da natureza amorosa e guerreira do povo português.
Cabe lembrar que o título do poema refere-se a uma lenda sobre Portugal e Luso, deus filho de Baco. Com base em uma antiga lenda, Camões recupera o discurso de que os portugueses seriam descendentes de Luso.
Os planos de Construção
No poema, podem ser percebidos três planos de construção:
No plano mítico, temos o concílio dos deuses como fio condutor, como dissemos, a presença alegórica do gigante Adamastor, a Ilha dos Amores e as profecias.
No plano literário, destacamos os excursos do narrador.
O excurso trata-se da inserção dos pensamentos, críticas e questionamentos do narrador no texto.
No plano histórico, temos as referências aos principais eventos da história de Portugal, através de um elenco de batalhas, de reis e de grandes navegadores, dentre esses, destacando-se Vasco da Gama.
A experiência pessoal de Camões permitiu relatos muito precisos em sua obra sobre a vida na guerra e nas embarcações, referindo-se com propriedade no poema às minúcias da vida a bordo, como os surtos de escorbuto.
Cabe ressaltar a condição de Camões como um poeta que fora soldado e já havia participado de longas viagens marítimas, enfrentando, inclusive um naufrágio, no qual perdeu sua amada, a chinesa Dinamene. Segundo histórias da época, o poeta teria preferido salvar os manuscritos de Os Lusíadas no lugar de Dinamene.
Por uma questão didática, iremos elencar as principais matérias de cada plano, separadamente.
O narrador em Os Lusíadas
O narrador épico clássico pauta-se pelo seu afastamento. Com o foco narrativo em terceira pessoa, narra a história de um modo impessoal e impassível, reforçado pela simetria dos versos.
Uma das inovações da obra consiste, justamente, na presença de um narrador que rompe a impessoalidade. Mostra-se presente, muitas vezes, em excursos questionadores, inclusive, da própria matéria épica e da condição do poeta cujo valor é subestimado.
Prefere a pena à espada e critica os portugueses que desprezam a poesia, bem como os que cobiçam a fama, mas não a merecem:
Enfim, não houve forte capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.
(Canto V, estrofe 97)
O narrador chama a atenção ao seu valor e à sua genialidade em suas intervenções, promovendo a sua imagem e mostrando a sua coragem e a sua valentia ao lutar pelo reino português.
Outra inovação em relação à voz narrativa dá-se na cessão da voz narrativa a personagens que assumem a narração de batalhas, profecias e episódios: alternam-se no texto como as de Vasco da Gama, Velho do Restelo e do mitológico gigante Adamastor.
Alguns episódios que se destacam em Os Lusíadas
Sobre Inês de Castro, no canto IIII, nas estrofes 118 a135. Trata-se do amor, tido como imenso e verdadeiro, entre D. Pedro e a dama Inês de Castro, assassinada a mando do rei Afonso IV, que temia a influência da amante sobre o príncipe. A história de Inês de Castro havia sido contada por vários poetas e historiadores, mas, na obra, Camões inova ao considerar o amor o único culpado pela morte de D. Inês.
Sobre o gigante Adamastor, no canto V, estrofes 41 a 48. Personagem da mitologia grega, Adamastor, na obra personifica o Cabo das Tormentas e tenta impedir a passagem dos navegantes portugueses liderados por Vasco da Gama.
Sobre a Ilha dos Amores, nos cantos IX e X. Apresenta o prêmio criado por Vênus aos nautas lusos. É, obviamente, uma passagem fictícia e alude ao banquete oferecido por Tethys e aos jogos de sedução entre ninfas e portugueses que inserem no texto épico um contexto de sensualidade e de erotismo.
A máquina do mundo
Um ponto fundamental da narrativa está no capítulo X, quando Vasco da Gama, pela ligação com a deusa Thétys é aceito no Olimpo e vê a máquina do mundo, uma miniatura do universo, nos moldes da proposta de Ptolomeu.
A máquina aparece como um signo da capacidade de realização do povo português e vê-la é um prêmio para um de seus grandes realizadores, Vasco da Gama que pode, então, contemplar o universo. Aqui, anuncia-se uma perspectiva fortemente humanista, no que toca ao domínio e ao poder do homem e de sua ciência, mas a partir da mescla com os elementos mitológicos, em uma perspectiva alinhada aos outros aspectos fusionistas presentes no texto.