Translate this Page




ONLINE
71





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Gregório de Matos: Irreverência e Contradição
Gregório de Matos: Irreverência e Contradição

 

 

Gregório de Matos: Irreverência e Contradição

GREGÓRIO DE MATOS

 

Gregório de Matos e Guerra, nascido em 1633, na Bahia, foi, inegavelmente, o primeiro poeta brasileiro. A sua biografia revela um personagem extremamente controvertido; tão paradoxal e surpreendente quanto a sua poesia.

 

Estudou em Portugal e formou-se pela Universidade de Coimbra, vindo para o Brasil quando contava perto de cinquenta anos.  Atuou como juiz. Voltou ao Brasil em 1681, ocupando o cargo de vigário-geral. No entanto, foi desligado do cargo.

 

Composta por sátiras, poemas religiosos, líricos e amorosos, a obra de Gregório revela sua mestria técnica e agilidade verbal, inclusive empregando palavras da língua tupi, como podemos observar no poema a seguir:

  

Estudou em Portugal e formou-se pela Universidade de Coimbra, vindo para o Brasil quando contava perto de 50 anos.  Atuou como juiz. Voltou ao Brasil em 1681, ocupando o cargo de vigário-geral. No entanto, foi desligado da função.

 

Tendo vendido as terras que ganhara como dote ao casar-se com Maria dos Povos, conta-se que teria deixado o dinheiro largado em casa e gastado desmedidamente. Conta-se que teria, em certo momento da vida, abandonado tudo para vagar como “cantador itinerante, convivendo com todas as camadas da população” (MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos/ Gregório de Matos; seleção e organização José  Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 20)

 

Atenção = Embora tenhamos notícia de que sua produção poética foi bastante extensa, não se conhece nenhum poema assinado por ele ou impresso em vida. Reunidos, ao longo do tempo, por colecionadores, há casos de um mesmo poema apresentar versões bastante distintas.

 

Além da dificuldade de se estabelecer a originalidade do texto do autor, há que se considerar as traduções livres de Quevedo e Gôngora, que aumentam a sua bibliografia. Como vemos, a obra de Gregório suscita, por si só, grande polêmica. No entanto, é importante destacar que a noção de autoria não tinha no século XVII, o mesmo valor que tem hoje.

 

“A sátira é um estilo fortemente regrado por convenções de produção e recepção. Trabalho regido principalmente pela agudeza, caricaturização, uso de metáforas, ridicularização do sexo e julgamento de valores. A sátira barroca obedece tais regras sendo produzida em conformidade com o lugar em que é trabalhada. Situando-se a sátira de Gregório de Mattos no cenário da Bahia do séc. XVII ela expressa-se em todos os seus aspectos, condicionada socialmente dentro da discrição cortesã, do gosto vulgar, da fantasia poética.” Laeticia Jensen Eble.A Sátira a Serviço de Gregório.

 

 

  • “Não há realmente uma consciência nacionalista ou baiana, mas sim um claro enfrentamento entre os diferentes estratos sociais em conflito na época, uma resistência em admitir o declínio da nobreza a qual pertence e ascensão da mercancia e a disputa pelo poder. Como resultado de sua insatisfação, o Boca-do-Inferno revela exaustivamente um acentuado preconceito de cor e raça, atacando viperinamente aqueles que julgava concorrentes com os homens-bons na luta pelo dinheiro e prestígio: judeus, negros, índios (caramurus), maganos, ingleses (brichotes), comerciantes, representantes políticos e do clero, a mulher negra e a mestiça, mulatos, mamelucos, etc:” (Laeticia Jensen Eble.A Sátira a Serviço de Gregório.)

 

Veremos alguns poemas e sonetos de Gregório se Matos, destacando trechos que irão revelar sua perspectiva e as  principais características de seu trabalho.

 

 A OBRA

Composta por sátiras, poemas religiosos, líricos e amorosos, a obra de Gregório revela sua mestria técnica e agilidade verbal, inclusive empregando palavras da língua tupi, como podemos observar no poema a seguir:

  

AOS CARAMURUS DA BAHIA

 

Um calção de pindoba, a meia zorra,

Camisa de urucu, mantéu de arara,

Em lugar de cotó arco e taquara

Penacho de guarás em vez de gorra.

 

Furado o beiço, e sem temor que morra

O pai, que lho envasou cuma titara

Porém a Mãe a pedra lhe aplicara

Por reprimir-lhe o sangue que não corra

Alarve sem razão, bruto sem fé,

Sem mais leis que a do gosto, quando erra

De Paiaiá tornou-se em abaité.

 

Não sei onde acabou, ou em que guerra:

Só sei que deste Adão de Massapé

Procedem os fidalgos desta terra

 

ANÁLISE DO POEMA

 

No poema, observa-se a crítica dura e impiedosa aos “nobres” da Colônia, os “caramurus”, os novos-ricos que detinham o poder econômico e político no Brasil colonial. A verve do esgrimista impiedoso das palavras rendeu-lhe o apelido Boca do Inferno.

 

Note também que o ponto de vista de Gregório é o de um descendente nobre de uma família de proprietários de terras e engenho, cujos bens foram se perdendo, restando-lhes apenas a memória de fidalguia. O poeta assume, assim, o tom amargo ao expor as suas críticas à mestiçagem, mas também à corrupção; tematiza o rancor de um reinol de alta estirpe, injustiçado pela ralé que governa a Colônia.

 

Destacam-se, na obra gregoriana, os poemas religiosos cujos matizes barrocos podem ser assinalados. Embora a autoria seja questionada devido à semelhança com poemas de outros autores da época, a beleza dos versos e a riqueza estilística merecem atenção. Como no soneto:

 

O eu-lírico vai buscar nas sagradas escrituras o exemplo que servirá de precedente: o episódio da ovelha desgarrada. Por analogia, a salvação de sua alma pecadora seria motivo de glória para Deus; e se pecava tanto, era por acreditar que seria perdoado, já que  a condenação poderia significar a perda da glória divina.

 

A Jesus Cristo nosso Senhor

 

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,

Da vossa alta clemência me despido;

Porque, quanto mais tenho delinquido,

Vos tenho a perdoar mais empenhado.

 

Se basta a vos irar tanto pecado,

A abrandar-vos sobeja um só gemido:

Que a mesma culpa, que vos há ofendido,

Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada

Glória tal e prazer tão repentino

Vos deu, como afirma na sacra história,

 

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.

 

(BUENO, Alexei. Uma história da poesia brasileira. Rio de Janeiro: G. Ermakkoff Casa Editorial, 2007. p.31)

 

ANÁLISE DO POEMA

Nesse soneto, é perceptível a tensão barroca mediante o uso de figuras de linguagem como os pares antitéticos: pecar/perdoar e lisonja/ofensa. No entanto, a força do poema reside no tom argumentativo com que pretende convencer Deus de sua salvação.

 

O eu lírico vai buscar nas sagradas escrituras o exemplo que servirá de precedente: o episódio da ovelha desgarrada. Por analogia, a salvação de sua alma pecadora seria motivo de glória para Deus; e se pecava tanto, era por acreditar que seria perdoado, já que a condenação poderia significar a perda da glória divina.

 

Veja que o tom de oração recobre a petição do “advogado”, cujo talento argumentativo se coloca a serviço da salvação da alma, conscientemente pecadora.

 

Os Principais Temas

 

LÍRICA AMOROSA

  A contradição entre amor e desejo

A MESMA D. ÂNGELA

Anjo no nome, Angélica na cara!

Isso é ser flor, e Anjo juntamente:

Ser Angélica flor, e Anjo florente,

Em quem, senão em vós, se uniformara:

Quem vira uma tal flor, que a não cortara,

De verde pé, de rama florescente;

E quem um Anjo vira tão luzente,

Que por seu Deus o não idolatrara?

Se pois como Anjo sois dos meus altares,

Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda.

Livrara eu de diabólicos azares.

Mas vejo, que por bela, e por galharda

Posto que os Anjos nunca dão pesares,

Sois Anjo que me tenta, e não me guarda

 

O tema do poema é o caráter contraditório dos sentimentos do poeta pela mulher, pois essa é simultaneamente “flor” (metáfora da beleza) e objeto do desejo, e “anjo” (metáfora da pureza) e símbolo da elevação espiritual.

O paradoxo dos versos finais sintetiza a contradição entre o “amar” e o “querer” :

“Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.”

 

A lírica amorosa e filosófica de Gregório de Matos conta com significativa produção em sua maioria de sonetos de inspiração camoniana. São temas comuns:

- a transitoriedade da vida,

- considerações sobre o ciúme,

- o silêncio e

- as declarações amorosas.

 

POEMA

Aos afetos, e lágrimas derramadas na ausência da dama a quem queria bem

 

Ardor em firme coração nascido;

Pranto por belos olhos derramado;

Incêndio em mares de água disfarçado;

Rio de neve em fogo convertido:

 

Tu, que em um peito abrasas escondido;

Tu, que em um rosto corres desatado;

Quando fogo, em cristais aprisionado;

Quando cristal em chamas derretido.

Se és fogo como passas brandamente,

Se és neve, como queimas com porfia?

Mas ai, que andou Amor em ti prudente!

 

Pois para temperar a tirania,

Como quis que aqui fosse a neve ardente,

Permitiu parecesse a chama fria.

 

(MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos/Gregório de Matos; seleção e organização José  Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.222)

 

ANÁLISE DO POEMA

A beleza da descrição da lágrima metaforizada em fogo e neve, expressões antitéticas, desenvolve, ao longo do soneto, o lamento do eu lírico que pondera sobre o paradoxo do sentimento amoroso.

 

A primeira estrofe apresenta, nos dois últimos versos, a estrutura quiástica  que reforça o contraste, mediante o espelhamento.

 

O mesmo procedimento se percebe também nos dois últimos versos da segunda estrofe, onde o vocativo “tu”, a quem se dirige o poeta, são as lágrimas que sintetizam essa dualidade.

 

Na 3ª estrofe, o questionamento do eu lírico se responde, pois é o Amor que torna possível o paradoxo do fogo, que simboliza a paixão e o desejo, a ser sublimado pelo sentimento amoroso de castidade e pureza, representada pela neve – como se lê na 4ª estrofe.

 

Como vimos, a importância da poesia de Gregório de Matos se consolida não apenas pela variedade ou volume de obras, mas principalmente por apresentar os traços da literatura que inaugura: a hibridez, a intensidade e a conciliação.

 

Pensar a Literatura Brasileira é também refletir sobre a maneira especial, porque própria da cultura de nosso povo, de compreender e expressar os sentimentos e as angústias humanas. Assim como fizeram os autores do século XVII, assim como fazemos nós no século XXI.

 

Por isso, a força e a atualidade de seus poemas ainda nos causam admiração e são temas de pesquisas acadêmicas. Para finalizar, vamos assistir a um vídeo no qual um poeta contemporâneo, Wally Salomão, recita Gregório.