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José de Alencar
José de Alencar

 

JOSÉ DE ALENCAR

O Romantismo e a tarefa de construção da “literatura nacional”

Fases ou aspectos do romance alencariano.

Referências à Literatura Brasileira

  • Almeida Garrett (1826), ao traçar o primeiro panorama evolutivo da literatura portuguesa, menciona a literatura produzida no Brasil e sugere que estes deveriam escrever “seguindo as sugestões da terra, trocando a mitologia pela realidade;
  • Ferdinand Denis ( Résumé de l´Histoire Littéraire du Brésil) – sugere a descrição da natureza e o  “aproveitamento, como tema, tanto do índio quando dos primeiros colonos” ( Candido)

 

A Independência e o desenvolvimento da ideia romântica:

a)      O desejo de exprimir o orgulho;

b)      A aspiração de criar uma literatura independente, diversa da antiga metrópole;

c)      A noção de atividade intelectual como tarefa patriótica na construção nacional.( Candido)

 

Marco inicial:

A publicação de Niterói, Revista Brasiliense de Ciências, Letras e Artes, em Paris, 1836. Nela, os estudos de Gonçalves de Magalhães e Pereira da Silva estabeleceram o ponto de partida para a teoria do Nacionalismo literário. O autor de Suspiros poéticos e saudades perguntava ironicamente:

“ Pode o Brasil inspirar a imaginação dos poetas e ter uma poesia própria? Os seus indígenas cultivaram porventura a poesia?”

 

José de Alencar ( Ceará, 1829 – RJ, 1877):

“Foi o autor que pretendeu ver um país em conjunto, de extremo a extremo, e se tornou o grande poeta, o grande historiador, o grande pintor desse país.” Agripino Grieco.

 

A estreia literária será como historiador:

 

“ (...) e da história – a história pátria – Alencar conservará, daí para a frente sem lapsos, o gosto romântico e nativista; ao mesmo tempo que a prática de um jornalismo militante( artigos não só literários, mas também políticos e econômicos publicados no Correio mercantil e depois reunidos nas ‘crônicas’ de Ao correr da pena, 1854”

 

José de Alencar:

“A sua notoriedade começou com as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, publicadas em 1856, com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio de Janeiro, nas quais critica veementemente o poema épico de Domingos Gonçalves de Magalhães, favorito do Imperador e considerado então o chefe da literatura brasileira. Estabeleceu-se, entre ele e os amigos do poeta, apaixonada polêmica de que participou, sob pseudônimo, o próprio Pedro II.” http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=889&sid=239

 

A obra alencariana:

“Foram 21 romances que podem ser divididos em: indianistas, históricos, regionais e citadinos, (...) conviria buscar, no entanto, o motivo único que rege a sua estrutura e que, talvez, se possa enunciar como um anseio profundo de evasão no tempo e no espaço”

 

A Alencar importava “ cobrir com  a sua obra narrativa passado e presente, cidade e campo, litoral e sertão, e compor uma espécie de suma romanesca do Brasil” (Bosi)

 

A importância da obra romancesca de Alencar

“ Nos romances de José de Alencar (...) não só ecoa a nota indianista(...), mas onde o Brasil todo, dos campos e das cidades, dos negros e dos índios, da burguesia e do povo, encontra sua própria dimensão, sua íntima razão literária (...) será Alencar o grande nó da cultura romântica: e será a partir dele, de seu exaltado e exaltante romantismo, que os futuros literatos do Brasil irão traçar as diretrizes, senão os modelos, para a aquisição de um estilo nacional” Luciana Stegagno-Picchio

 

Quando pensamos o Romantismo no Brasil, a figura de Alencar e a importância de suas obras sobressaem . O autor publicou vinte e um romances, classificados, por assunto, em indianistas, históricos, regionais e urbanos.

 

Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, observa que  muito importava a “Alencar cobrir com a sua obra narrativa passado e presente, cidade e campo, litoral e sertão, e compor uma espécie de suma romanesca do Brasil” (BOSI, A História concisa da literatura brasileira, p. 137)

 

A versatilidade de sua pena tanto contemplava os mitos colonizadores, como se observa em suas narrativas históricas e indianistas, quanto nos romances de viés urbano, onde os valores da sociedade do século XIX são analisados e criticados.

 

O Guarani  ( 1857)– romance de projeção

 

 “Tudo era grande e pomposo no cenário que a natureza, sublime artista, tinha decorado para os dramas majestosos dos elementos, em que o homem e apenas um simples comparsa.

 

No ano da graça de 1604, o lugar que acabamos de descrever estava deserto e inculto; a cidade do Rio de Janeiro tinha-se fundado havia menos de meio século, e a civilização não tivera tempo de penetrar o interior.”

 

O Guarani, publicado em 1857, é um romance de natureza histórica, exemplar para a compreensão da presença do índio na literatura romântica.

 

O Guarani – romance de projeção

 

“Uma simples túnica de algodão, a que os indígenas chamavam aimará, apertada à cintura por uma faixa de penas escarlates, caía-lhe dos ombros até ao meio da perna, e desenhava o talhe delgado e esbelto como um junco.”

 

“Nessa muda contemplação, o índio esqueceu tudo. Que lhe importava o precipício que se abria a seus pés para tragá-lo ao menor movimento, e sobre o qual planava num ramo fraco que vergava e se podia partir a todo o instante!

 

Era feliz: tinha visto sua senhora; ela estava alegre, contente e satisfeita; podia ir dormir e repousar.”

 

O Guarani – a crítica

 

“Alencar criou, com base mais lendária do que histórica, o mundo poético e heroico de nossas origens, para afirmar a nossa nacionalidade, para provar a existência de nossas raízes legitimamente americanas.”

 

 “O índio não era escravo nem representava o trabalho; era americano e queria ser livre. Era o que convinha ao idealismo romântico.”

 

“ (...) o indianismo de Alencar pouco ou nada teria de historicamente exato, o,local, os fatos, as personagens de modo geral, e os índios de modo particular, sendo mais fantasia de sua imaginação do que tentativa de autêntico levantamento de nossas raízes mais profundas.” ( Afrânio Coutinho)

 

“ (...) E o encanto de O guarani provém exatamente dessa idealização de todas as componentes construtivas: onde a própria antropomorfização dos elementos da natureza, rios, florestas, corresponde à escolha de um nível estilístico, uma oitava acima da realidade, e por isso mesmo capaz de gerar um impacto emocional.” ( Luciana Stegagno-Picchio)

 

“ Para dar forma ao herói, Alencar não via meio mais eficaz do que amalgamá-lo à vida da natureza.(...) É a conaturalidade que o encanta: desde as linhas do perfil até os gestos que definem um caráter, tudo emerge do mesmo fundo selvagem” (Bosi)

 

Romances Regionalistas:

“(...) Romances como Til (1872), O tronco do ipê (1871), O sertanejo (1875) e O gaúcho (1870) mostram as peculiaridades culturais da nossa sociedade rural, com acontecimentos, paisagens, hábitos, maneiras de falar, vestir e se comportar diferentes da vida na Corte.

 

Assim é que em O gaúcho a Revolução Farroupilha (1835/1840) serve como pano de fundo à narrativa. O enredo de O tronco do ipê traz como cenário o interior fluminense e trata da ascensão social de um rapaz pobre. Em Til, o interior paulista é o cenário da narrativa.”(Faraco)

 

Romances Regionalistas

“O que vale de fato nessas obras é, sobretudo, o poder de imaginação e a capacidade de construir narrativas bem estruturadas. Os personagens são heróis regionais puros, sensíveis, honrados, corteses, muito parecidos com os heróis dos romances indianistas. Mudavam as feições, mudava a roupagem, mudava o cenário. Mas, na criação de todos esses personagens, Alencar perseguia o mesmo objetivo: chegar a um perfil do homem essencialmente brasileiro.”

 

Lucíola. Perfil de mulher. (1862)

“A primeira intervenção de Alencar na questão da cortesã se deu no palco que certamente o fascinava pelo seu potencial de tribuna, tão explorado pelos românticos. Em 1858 entrou em cena As asas de um anjo. Depois da segunda récita, a censura suspende a peça e o escândalo ocupa os jornais. Alencar se defende nas páginas do Diário com um pequeno texto. Serenados os ânimos, em 62, já parlamentar conservador, volta ele ao tema com uma reflexão pausada: Lucíola.”

 

“O romance se apresenta, não como confissão de uma história de amor, mas como análise da experiência. A convivência com  a cortesã se deu no passado quando o ingênuo provinciano acabava de desembarcar na corte. A convivência com o leitor se dá já com o Paulo integrado na vida da cidade, conhecedor de seus trejeitos e normas. É este processo de conhecimento que o texto procura recriar e analisar. É a linguagem do desvendamento. Por isso o movimento do romance segue compasso da revolução de Lúcia e dos limites socialmente impostos a ela..”( Valéria de Marco)

 

“Era outra mulher.

O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua, se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estranho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes das narinas que tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que incendiavam a pupila negra.”

( Lucíola.)

 

Senhora – (1875)

Em Senhora, que é um dos romances mais bem constituídos do autor, realizou Alencar uma boa crítica à educação tradicional, ao casamento por conveniência – simples contrato de interesse econômico – construindo, ao mesmo tempo, o mundo ideal acima da realidade circundante, com as mesmas personagens que haviam sido vítimas de casamento por dinheiro. Sublinhou, dessa forma, o caráter do amor romântico como retificador de conduta e portador de substância, que é o tema central de todos os romances desse grupo – Cinco minutos, A viuvinha, Lucíola, Diva, A pata da gazela, Sonhos d´ouro, Senhora, Encarnação e Escabiosa)”(Coutinho)

 

“Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua riqueza. Era um desafio que lançava ao mundo; orgulhosa de esmagá-lo sob a planta, como a um réptil venenoso.(...)

 

As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas, receberia como rainha desdenhosa, a vassalagem que lhe rendiam.” ( continua)

  

“Por isso mesmo considerava ela o ouro um vil metal que rebaixava os homens; e no íntimo sentia-se profundamente humilhada pensando que para toda essa gente que a cercava, ela, a sua pessoa, não merecia uma só das bajulações que tributavam a cada um de seus mil contos de réis.”

(Senhora)



Romances Históricos: As minas de prata (1866) e A Guerra dos Mascates(1873)

 

A busca no passado histórico a inspiração para criar uma nova interpretação literária a fatos que marcaram a nossa. Assim, tanto pode ser tomado como tema a busca por ouro no interior do Brasil, as lutas pelo aumento das terras nas fronteiras brasileiras ou mesmo um acontecimento como a Revolta acontecida no Nordeste.

 

Romances Históricos: As minas de prata (1866)

 

O assunto do livro é o famoso roteiro das minas de prata, cuja descoberta se atribui a um aventureiro, Robério Dias. É em torno de uma incansável busca pelo roteiro das minas que todas as páginas do romance gravitarão.

 

Estácio, o herói do romance é filho de Robério Dias. Jovem pobre, mas abastado de grande coragem e honra cavalheirescas, tem pela frente dois desafios: reabilitar a memória do pai, livrando-o da acusação de ter inventado a existência das minas, e superar o preconceito social para casar-se com Inês de Aguilar, que é inacessível, pois é nobre e rica. Para tanto, precisa recuperar o valioso roteiro.

 

O estilo

“ Para ele, a arte de narrar consistia em pintar com as palavras. Daí o predomínio do elemento descritivo, a descrição tendo mais importância que a coisa descrita.”

 

Também o fato de haver enriquecido a língua literária, acrescentando-lhe numerosos tupinismos e brasileirismos, construindo suas imagens ou fazendo suas comparações com elementos da natureza americana, também isso contribui para a singularidade de seu estilo.” ( Afrânio Coutinho)

 

Ao Patriarca do Romance Brasileiro:

“ Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira. E não é só porque houvesse tratado assuntos nossos. Há um modo de ver e de sentir que dá a nota íntima da nacionalidade, independente da face externa das cousas... O nosso Alencar juntava a esse dom a natureza dos assuntos, tirados da vida ambiente e da história local. Outros o fizeram também, mas a expressão do seu gênio era mais vigorosa e mais íntima” ( Machado de Assis)

 

O GUARANI

Em uma breve síntese, Peri, protagonista da narrativa, encanta-se por Ceci e devota a ela e a seu pai, Dom Antônio de Mariz, lealdade típica de um cavaleiro medieval. As peripécias que conduzem a narrativa folhetinesca dão a conhecer um mundo de conflito entre índios aimorés e brancos, assim como entre brancos de boa índole e os mercenários, comandados por Loredano.

 

Analisando a obra, Alfredo Bosi, em Dialética da colonização chama a atenção para a inserção do elemento indígena em um regime feudal, conjugada à representação da sociedade colonial dos séculos XVI e XVII de maneira mítica e idealizada: “o mito é uma instância mediadora (...) o mito alencariano reúne, sob a imagem comum do herói, o colonizador, tido como generoso feudatário, e o colonizado, visto, ao mesmo tempo, como súdito fiel e bom selvagem.”

 

É importante observar que Peri concilia duas características importantes do Romantismo: a cor local, representada pela descrição da natureza brasileira e pelo indígena, e a noção de bondade natural do homem, intocado pela sociedade.

 

A articulação desses aspectos elimina, de certa forma, o compromisso com a verossimilhança do texto, uma vez que a rebeldia do nativo desaparece, assim como a crueldade do colonizador. Nesse sentido, por não representar as verdadeiras relações entre colonizador e colonizado, por redimensioná-las no tempo passado, Alencar escapa da polemização resultante do movimento de lusofobia, decorrente da Independência recente.

 

O indígena ganha também o protagonismo da cena na obra Iracema (Lenda do Ceará), publicada em 1865. Obra definida como primitiva por Alencar. 

 

(apud. Bosi, A. História concisa da literatura brasileira. 41 ed. São Paulo: Cultrix, 2003.p. 136)

 

“ (...) primitiva, que se pode chamar de aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada; são as tradições que embalaram a infância do povo, ele escutava como o filho a quem a mãe acalenta no berço com as canções da pátria, que abandonou.

 

Iracema pertence a essa literatura primitiva, cheia de santidade e enlevo, para aqueles que venceram na terra da pátria a mãe fecunda – alma mater, e não enxergam nela apenas o chão onde pisam.”

 

IRACEMA

O romance também é exemplar da impressionante capacidade criadora de Alencar, só ultrapassada pelo papel pioneiro no que se refere à pesquisa da linguagem, no sentido de fazer acompanhar o texto com os termos próprios àquela realidade e região.

 

No prólogo da obra Iracema, o autor recomenda o estudo da língua indígena para a construção da nacionalidade da literatura, como lemos no trecho que segue:

 

“O conhecimento da língua indígena é o melhor critério para a nacionalidade da literatura. Ele nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito, e até as menores particularidades de sua vida.

 

E nessa fonte que deve beber o poeta brasileiro, é dela que há de sair o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.”

 

Em Iracema, por exemplo, o léxico condiciona a musicalidade e a poesia do texto, como podemos ler nesse belíssimo trecho em que a índia Iracema é apresentada ao leitor e quando conhece o amor de sua vida, o branco Martim. Desse encontro nascerá a trama:

 

Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

 

Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto.

 

Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste(...)

 

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

 

Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

 

Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.”

 

Iracema, de José de Alencar Fonte: ALENCAR, José de. Iracema. 24. ed. São Paulo: Ática, 1991. (Bom Livro). Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para . Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para e saiba como isso é possível. IRACEMA José de Alencar Prólogo da 1ª Edição Meu amigo. Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea, no doce lar, a que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal. Imagino que é a hora mais ardente da sesta. O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emudecem; as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais brilhantes expanções do poder criador. Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede. Abra então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Percorra suas páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves que o trazem ocupado. Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se iludam as reminiscências da infância avivadas recentemente. Se não, creio que, ao abrir o pequeno volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem da várzea. Derrama-o, a brisa que perpassou nos espatos da carnaúba e na ramagem das aroeiras em flor. Essa onda é a inspiração da pátria que volve a ela, agora e sempre, como volve de continuo o olhar do infante para o materno semblante que lhe sorri. O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os múrmuros do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros. Para lá, pois, que é o berço seu, o envio. Mas assim mandado por um filho ausente, para muitos estranho, esquecido talvez dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desafeição, qual sorte será a do livro? Que lhe falte hospitalidade, não há temer. As auras de nossos campos parecem tão impregnadas dessa virtude primitiva, que nenhuma raça habita aí, que não a inspire com o hálito vital. Receio, sim, que o livro seja recebido como estrangeiro e hóspede na terra dos meus.

 

Se porém, ao abordar as plagas do Mocoripe, for acolhido pelo bom cearense, prezado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos tempos prósperos, estou certo que o filho de minha alma achará na terra de seu pai, a intimidade e conchego da família. O nome de outros filhos enobrece nossa província na política e na ciência; entre eles o meu, hoje apagado, quando o trazia brilhantemente aquele que primeiro o criou. Neste momento mesmo, a espada heróica de muito bravo cearense vai ceifando no campo da batalha ampla messe de glória. Quem não pode ilustrar a terra natal, canta as suas lendas, sem metro, na rude toada de seus antigos filhos. Acolha pois esta primeira mostra para oferecê-la a nossos patrícios a quem é dedicada. Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro; o outro saberá depois que o tenha lido. Muita cousa me ocorre dizer sobre o assunto, que talvez devera antecipar à leitura da obra, para prevenir a surpresa de alguns e responder às observações ou reparos de outros. Mas sempre fui avesso aos prólogos; em meu conceito eles fazem à obra, o mesmo que o pássaro à fruta antes de colhida; roubam as primícias do sabor literário. Por isso me reservo para depois Na última página me encontrará de novo; então conversaremos a gosto, em mais liberdade do que teríamos neste pórtico do livro, onde a etiqueta manda receber o público com a gravidade e reverência devida a tão alto senhor.

Rio de Janeiro, maio de 1865. J. DE ALENCAR

 

http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp

 

Romance urbano

Dos romances urbanos de Alencar, Senhora e Lucíola merecem atenção pela crítica aos costumes da sociedade burguesa da época, bem como pela riqueza da descrição de cenários e personagens. É nos salões cariocas que o enredo se desenvolve:   Aurélia Camargo, protagonista de Senhora, denuncia o casamento por interesse, movido pelo dote, e não pelo sentimento.

 

Ao iniciar o romance, a personagem é uma moça pobre, rejeitada por Fernando Seixas, que se compromete com outra por um dote maior.  No entanto, Aurélia  enriquece e engendra uma vingança contra ele.

 

A narrativa, de estrutura folhetinesca, é marcada por embates verbais entre os personagens, criando o suspense pelo final feliz, já que a tensão entre o amor e a ambição, ou entre o perdão e o rancor, move o andamento da trama.

 

Lucíola, personagem central que dá nome ao romance, narra a vida de uma cortesã, figura comum nos salões do século XIX. A delicadeza da trama do amor impossível é tecida com força dramática e energia lírica, percebida nas descrições das cenas mais fortes para a época.

 

Vamos conhecer um trecho dessa história.

http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000035.pdf