Em Cascais, Portugal.
Passagens para um novo mundo: a poética de Gil Vicente
Passagens para um novo mundo, em Portugal: o século XVI
Aspectos do Humanismo, em Portugal
Início: 1418, segundo Massaud Moisés (1988, p. 39).
As grandes navegações e a desorganização do modo de vida português e de seus valores.
A questão do fusionismo.
Fortalecimento da cultura laica.
Transformações importantes do período:
Cronistas importantes aparecem neste período como Fernão Lopes, que prefere a documentação escrita ao relato oral, como matéria de suas crônicas, além de demonstrar excelente talento literário.
Separação entre letra e música, no cancioneiro, a partir da publicação do Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende.
“Superada a voga da lírica trovadoresca, a poesia desliga-se de seus compromissos musicais, e passa a ser composta para a leitura solitária ou a declamação coletiva. A poesia torna-se autônoma, realizada apenas com as palavras, despidas do aparato musical, que a tornava dependente ou, ao menos, lhe cortava o voo. O ritmo, agora, é alcançado com os próprios recursos da palavra disposta em versos, estrofes, etc., e não com a pauta musical” (1988, p. 46).
Um pouco sobre a vida de Gil Vicente
Gil Vicente nasceu em 1465 ou 1466, provavelmente. Escreveu a maior parte dos seus autos em sua juventude, entre os catorze e os vinte e cinco anos. Aos cinquenta, ele, acusado tantas vezes de anticlericalismo, tornou-se sacerdote. É considerado o pai do teatro português, pois antes dele havia apenas manifestações parcas e incipientes. Antes de começar a sua carreira teatral, Vicente era ourives e tinha o cargo de Mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa. A ele é atribuída, ainda que com dúvidas, a Custódia de Belém, uma das joias mais belas e valiosas do país. Vicente ingressa no teatro após a oportunidade de visitar a Câmera Real e declamar um monólogo, conquistando a oportunidade de apresentar as suas peças para o público palaciano, entre 1502 e 1536, com o mecenato real.
É a partir desse quadro que Gil Vicente escreve. De sua pena, saem críticas severas a uma sociedade que experimenta uma modificação profunda e ainda não sabe como reorganizar os seus valores. Todos os setores sociais mereceram o seu olhar impiedoso: o clero, a nobreza, a burguesia e o campesinato.
Vicente usa o drama para pensar e criticar um universo no qual os valores medievais estão em crise, mas ainda não há novos valores para substituí-los.
Ao contrário, o que ele percebe e figura em suas peças é uma crescente falta de ética, em contraponto a um mundo medieval, que idealiza, em contraposição à ganância e ao enriquecimento fácil perceptíveis no novo Portugal do século XVI.
Ourives e Mestre da balança da Casa da Moeda de Lisboa. A ele é atribuída a Custódia de Belém.
Apresenta-se para o público palaciano (1502-1536).
O teatro vicentino e a crítica social
Críticas severas a uma sociedade que experimenta modificações profundas e ainda não sabe como reorganizar os seus valores. Todos os setores sociais mereceram o seu olhar impiedoso.
Critica em suas peças a crescente falta de ética, a ganância e o enriquecimento fácil em contraponto a valores medievais idealizados.
Opõe-se ao arrefecimento do trabalho braçal.
Objetivos da expansão marítima, segundo o Auto da Índia: “pelejar e roubar”.
A nova configuração da sociedade portuguesa e as personagens de Gil Vicente
A classificação da obra de Gil Vicente
Segundo o crítico literário Segismundo Spina (1970, p. 30-31), a obra de Gil Vicente pode ser dividida em quatro instâncias:
Os autos são dramas surgidos na Idade Média. São assim chamados por conta de sua duração, equivalente a de um ato do teatro clássico.
Os autos podem se divididos em:
• Mistério – Sobre questões relacionadas à fé.
• Moralidades – Discussão de questões éticas e morais.
• Milagres – Sobre a vida dos santos.
• Episódios pastoris – Falam sobre a vida rural.
Teatro romanesco – baseado nos romances de cavalaria.
Fantasias alegóricas – segundo Spina, “seus antecedentes ‘são os “momos’ realizados no fim da Idade Média, especialmente no reinado de D. João II; estas fantasias, que aparecem emolduradas pelos processos técnicos da pura cenografia alegórica, lembram muito o nosso teatro de revista” (SPINA, 1970, p. 31).
– Segundo Spina, seus antecedentes “são os “momos” realizados no fim da Idade Média, especialmente no reinado de D. João II; estas fantasias, que aparecem emolduradas pelos processos técnicos da pura cenografia alegórica, lembram muito o nosso teatro de revista” (SPINA, 1970, p. 31).
– Episódicas – Centradas em tipos específicos;
– Novelescas (ou narrativas) – histórias mais ou menos completas, a partir de uma intriga.
As personagens do teatro vicentino
As personagens dos dramas vicentinos, como visto, tendiam a representar, de modo caricato, os tipos sociais presentes na sociedade portuguesa, especialmente a lisboeta.
Suas ações representavam o choque entre os valores humanistas e medievais e a desorganização social. O desejo de ascensão social é muito criticado nas personagens, pois demonstraria um caráter questionável e uma postura ambiciosa, egoísta e, muitas vezes, corrupta.
Esse comportamento ia ao encontro do contexto da expansão marítima portuguesa, com as suas promessas de enriquecimento fácil.
– Ausência do tom épico na sua configuração.
– A linguagem atribuída às personagens vicentinas.
Um ponto importante sobre as personagens do teatro vicentino é a ausência do tom épico na sua configuração. Por exemplo, no Auto da Barca do Inferno há a exaltação dos cavaleiros cruzados, mas não dos heróis da navegação. Além disso, os cavaleiros não são nomeados, o que mostra o caráter vão da glória terrena.
Outro ponto importante é a linguagem atribuída às personagens vicentinas. Gil Vicente aplica realismo ao seu teatro ao conectar a linguagem empregada pela personagem à classe social à qual pertence. Em o Auto da Barca do Inferno, por exemplo, o corregedor e o frade proferem termos em latim; já o parvo mimetiza as falas das personagens, ridicularizando-as. Ele tem essa chancela, pois é uma personagem julgada como inconsciente
A sátira no teatro vicentino
Vicente valorizava as condutas de personagens que não se importam em ascender socialmente, mas em ser honestas e honradas. O trabalho, a fidelidade e a verdade também são princípios importantes. Através do riso, Gil Vicente pune e ridiculariza as personagens cujos padrões de comportamento afastavam-se desse ideal, seguindo os padrões estabelecidos pela poética clássica, que viam no riso uma forma de moralização.
O riso no teatro de Gil Vicente, portanto, não era gratuito, mas ligava-se a um princípio de adequação, que buscava, pela sátira, modificar aspectos sociais. A fim de potencializar esse aspecto, Vicente inseriu em suas obras algumas inovações, como a abordagem de questões contemporâneas e mais realistas, que apareceriam mescladas às alegorias. Além disso, aproveitou--se de elementos presentes na dramaturgia popular, como a participação da plateia no drama representado, que era interpelada pelos atores e poderia participar da representação.
Influências do teatro popular na obra vicentina
O teatro de Gil Vicente era voltado para o público nobre, mais especificamente para a Corte portuguesa. Tratava-se, portanto, de uma obra palaciana. Gil Vicente, entretanto, inovou e inseriu elementos presentes na dramaturgia popular medieval, em seus textos.
Elementos do teatro popular na obra vicentina:
Além da participação da plateia, como vimos, outros elementos oriundos do teatro popular, na obra vicentina, são:
Uso de alegorias
Emprego de temas relacionados ao universo bíblico, em algumas obras
Presença de personagens advindas da população mais pobre e iletrada
Alusão às temáticas populares, como o marido traído e a mulher que fica só, após o marido partir para o mar
Incorporação de canções e termos presentes no imaginário popular
Apesar da influência popular, o teatro vicentino também agregou elementos humanistas.
O Auto da Barca do Inferno
– Tempo e pelo espaço de sua apresentação
– Presença constante nas cenas de duas personagens alegóricas: o Anjo e o Diabo.
– Trânsito nos domínios do sagrado e do profano
– Fala do Anjo a Joane:
“Tu passarás, se quiseres
Porque em todos teus fazeres
Por malícia não erraste
Tua simpleza te baste
Para gozar dos prazeres”
O Auto da Barca do Inferno foi apresentado pela primeira vez em 1517. É uma peça alegórica, que representa um processo de julgamento de almas, nos moldes do juízo final católico. Passa-se à beira do rio da Morte, em um tempo indefinido. Para saber mais sobre O Auto da Barca do Inferno e o conceito de alegoria, acesse a Biblioteca Virtual disponível na plataforma.
Outro exemplo seria a Farsa de Inês Pereira, baseada no ditado popular “Mais vale um burro que me leve que cavalo que me derrube”. A partir dele, dá-se a representação de um momento crucial da vida da protagonista: a escolha do marido com quem se casará.
Cabe destacar, ainda, um auto de moralidade, o Auto da Alma. Neste auto, apresenta-se o embate entre o bem e o mal, através do difícil percurso da alma a caminho da salvação.
Leia a parte inicial do Auto da Barca do Inferno (disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=1815)