COM A PALAVRA UTE CRAEMER
Educadora, 81 anos. Nascida na Alemanha e vivendo há décadas no Brasil, é uma grande difusora, na América Latina, da pedagogia Waldorf, um dos ramos da Antroposofia, ciência espiritual criada pelo austríaco Rudolf Steiner
“É Preciso repensar a infância”.
Há mais de 50 anos vivendo e trabalhando no Brasil, a educadora comunitária Ute Craemer nasceu em uma Alemanha marcada pelo sofrimento – país que ela teve de abandonar aos 10 anos, quando os pais fugiam das complicações causadas pela Segunda Guerra Mundial. Ainda pequena, viu a miséria de perto morando em países como Egito, Paquistão e a antiga Iugoslávia. Passou a questionar qual seria sua missão na vida. E decidiu participar de programas de serviço voluntário no Exterior. Assim, descobriu que queria trabalhar com públicos diversos, criando pontes entre realidades sociais e econômicas diferentes. Adepta e evangelista da pedagogia Waldorf, que prega, entre outras questões, a vivência precedendo a teoria, a professora faz parte da direção da Sociedade Antroposófica no Brasil e participou ativamente dos movimentos da Aliança pela Infância e pela Humanização do Social. Ela esteve na Capital por ocasião das comemorações dois cem anos da pedagogia Waldorf, evento organizado pelo Movimento Antroposófico do RS, quando concedeu esta entrevista.
A chamada primeira infância é considerada um período especial, que marca significativamente a vida de uma pessoa. O que é importante que as crianças tenham nessa fase? E o que, quando em falta, pode prejudicar seu desenvolvimento?
A primeira infância – incluindo a gestação – é o alicerce da vida. Fatores importantes são criar vínculos humanos, cantar, brincar livremente, ouvir histórias significativas, viver em um ambiente caloroso, silencioso e/ou com sons mais naturais, a voz humana, uma alimentação saudável. Palavras-chave são calor, vida, respeito à individualidade da criança e às fases do seu desenvolvimento. Assim, cria-se resiliência. Se isso não acontecer, esse alicerce pode ser recuperado, do meu ponto de vista, por meio de pessoas que ajudem a criar a força interna em uma etapa seguinte de vida, pessoas de referência que acompanham a trajetória da criança, do jovem e do adulto com amor e com compreensão de sua trajetória individual.
No Brasil, há diferenças grandes na educação: Enquanto algumas crianças têm acesso à creche, a uma boa educação infantil e a escolas bem capacitadas no Ensino Fundamental e Médio (principalmente na rede particular), outras sofrem com falta de vagas, dificuldades de acesso e falta de professores com a formação adequada (especialmente na rede pública). Que impacto isso tem na formação?
De fato, há, sim, mais acesso à educação, saúde e lazer para quem tem dinheiro. Mas o problema não é só ligado à pobreza: as crianças da classe média alta estão sofrendo cada vez mais pelo acúmulo de exigências intelectuais, que não as deixam ser criativas. Portanto, é preciso repensar a infância e atuar em conformidade com as demandas dessa idade. Isso vale para todas as crianças, ricas e pobres, de forma igual.
É possível aproximar o aprendizado desses dois públicos em um país como o Brasil? O que é preciso fazer para que isso se torne realidade?
É preciso melhorar o ensino público, de modo a abarcar a maneira de ser da criança e do jovem. E, em relação ao ensino público, é preciso investir dinheiro nos educadores e na diversidade de pedagogias, e não apenas em estruturas, como em computadores, por exemplo.
A senhora escolheu o Brasil há décadas para trabalhar como educadora. O que a atraiu no país? E o que a mantém aqui ainda hoje?
O que me atraiu e mantém aqui é que o Brasil tem um potencial muito grande, além dos recursos naturais: são os seres humanos que aqui vivem. Por exemplo, estar aberto ao diferente, que se traduz inclusive na hospitalidade, principalmente das pessoas pobres da favela e da roça de acolher um estrangeiro. Também a mistura e o amálgama de culturas, a flexibilidade das pessoas, entre outros fatores. Vejo claramente as dificuldades e os problemas, mas, no Brasil, existe uma vontade muito grande de resolvê-los com criatividade e inteligência.
A senhora veio de um contexto muito difícil nos primeiros anos de vida. Que marcas a constante peregrinação entre países em busca de segurança durante a Segunda Guerra Mundial deixou na sua infância?
Em primeiro lugar, meus pais conseguiram me poupar do medo que uma guerra provoca. Conseguiram criar em mim um ambiente de confiança na vida, apesar das noites passadas em abrigos antiaéreos. No pós-guerra, vivemos na Iugoslávia, no Egito e no Paquistão, e, para mim, isso significou um aprendizado do que acontece no mundo, inclusive as misérias causadas pelas guerras, por exemplo, por ocasião da separação entre Índia e Paquistão. Tudo isso gerou em mim a vontade, na idade adulta, de contribuir para o aspecto social.
Uma experiência como essa deve marcar para sempre a vida de uma pessoa. Apesar de desafios como esses quando ainda tão jovem, é possível ter uma vida frutífera? Como conviver com essas lembranças, essas marcas impactantes?
Essas marcas são importantes se houver pessoas que sirvam de referência, ou modelo, para transformar traumas em proatividade. Algo “pesado” que tenha acontecido pode ser estímulo para transformar, por exemplo, a vida de outras pessoas que passaram por situações parecidas.
A senhora enxerga semelhanças, guardadas as proporções, entre a sua experiência, em meio a um conflito armado, e jovens que hoje convivem com a insegurança, a constante ameaça de tiros em cidades fragilizadas?
Sim. Há semelhanças no sentido da traumatização e do sofrimento causado. Mas também há diferenças. Por exemplo, é imprevisível saber onde e quando bombas, que matam e mutilam indiscriminadamente centenas de pessoas de uma só vez, vão cair. Isso também pode acontecer nas periferias, com as balas perdidas, a invasão de policiais e os tiroteios, mas, nesse caso, com alguma chance de se proteger e tentar evitar essas situações de risco.
O Brasil é um país muito miscigenado. A sociedade brasileira convive bem com as diferenças?
No Brasil, o branco, o negro e o indígena vivem dentro da mesma pessoa. Quem é afrodescendente quase sempre tem dentro de si, uma ascendência branca e/ou indígena, em proporções variadas. Além disso, não se trata de ver somente a cor, mas também a riqueza das misturas, bem como a individualidade que pode transformar as desigualdades históricas ainda presentes. Não adianta dividir em preto e branco. O que realmente se faz necessário é resolver a desigualdade econômica.
O que a convivência com pessoas em comunidades vulneráveis mais lhe ensinou?
O aprendizado é enorme. Descobri coisas como tolerar e compreender o outro, diferente de mim; ter coragem de agir, apesar de obstáculos enormes, como violências de vários tipos, mortes assassinatos, adicção, abusos, etc. Admiro as pessoas que conseguem superar isso e que, apesar de tudo, têm alegria de viver.
Com mães e pais trabalhando para sustentar a família – em alguns casos, inclusive, diante do desemprego, sem poder tirar licença maternidade ou paternidade –, as crianças têm cada vez tido menos contato com eles. De que maneira aliviar esse problema?
Se, na vida atual, contato com os pais se torna difícil, passa a ser necessário ter uma pessoa de referência, de confiança, com contato constante. Pode ser um educador, uma professora ou cuidadora, que acompanhe a criança durante um bom tempo. Na prática, isso seria possível se, em uma classe ou uma creche, houvesse um educador que acompanhasse a criança durante vários anos, como ocorre nas escolas Waldorf. Desse modo, pode ser criado um esteio interior de confiança na criança, mesmo sem ela ter os pais muito próximos.
Outra questão muito comum é que, também por falta de tempo e por conta da exaustão, pais têm, muitas vezes, deixado os filhos pequenos assistirem vídeos, interagindo com jogos no celular: assim, eles ficam “quietinhos”. Quando muito frequente, isso é prejudicial para pais e filhos?
Sim. Já está comprovado que o excesso de distração com instrumentos eletrônicos faz mal à criança. Porque aliena e não cria vínculos humanos. Existe uma história verdadeira segundo a qual a criança quer ser – e não apenas ter – um celular. A mãe pergunta: mas por que, meu filho? E o filho responde: porque você sempre conversa com ele, e não comigo. Imaginem que triste...
Convivendo com pais e educadores, é possível perceber o quanto se costuma criar grandes expectativas para os filhos. Não raro, isso significa inscrevê-los em diversas atividades de aprendizado (inglês, robótica, edição de vídeos...) quando ainda muito jovens, na expectativa de que absorvam tanto conhecimento quanto possível nos primeiros anos. Qual o impacto disso para a criança?
O resultado que vemos é a desvinculação de si próprio, da sua individualidade. A criança e o jovem precisam se descobrir a si mesmo. É um processo dificílimo. Mas necessário. É justamente isso que o diferencia do animal, que já vem pronto ao mundo. O longo caminho de autoconhecimento e da procura da sua tarefa no mundo têm a ver não só com conhecimentos – inglês, robótica, etc. –, mas com o ócio, um tempo livre para descobrir o que está dentro de si. Essa procura começa quando o nenê vai descobrir seus dedinhos, vai tentar inúmeras vezes se levantar sem andador, vai aprender a ler e escrever dentro do seu próprio ritmo; tem a ver com o brincar livre, com leituras que o jovem mesmo escolhe, com conversas com os pais, amigos, com pessoas de referência. Assim ele se torna um ser humano com opiniões próprias e ações coerentes.
A senhora defende uma vida mais “brincante”. Isso serve apenas para as crianças, ou também os adultos devem procurar mais atividades de lazer na vida? Por que isso é importante?
O brincar livre promove uma criatividade que, posteriormente, com o adulto, se transforma em entusiasmo de trabalhar, inclusive em prol de um ideal. O ato de brincar aquece o coração e ativa a atuação da pessoa – qualidades essenciais para a vida adulta.
Como a metodologia Waldorf tem sido recebida nos lugares em que a senhora e as associações em que trabalha a aplicam? Ela se adapta bem ao contexto brasileiro?
Brincar, ouvir histórias, ter uma pessoa de referência constante são, por exemplo, necessidades que todas as crianças no mundo inteiro almejam saciar, tanto faz se na favela ou nos meios socioeconômicos mais abastados. A pedagogia Waldorf nutre essas necessidades vitais da criança. Temos uma metodologia de formação dos educadores comunitários Waldorf baseada em suas experiências de vida, que incluem a cultura popular e, a partir disso, damos consciência ao que é adequado e para qual faixa etária. Não chegamos com teorias, mas com a prática, e a partir dela refletimos o porquê, por exemplo, do brincar, da contação de histórias, da arte. A pedagogia Waldorf tem crescido muito ao longo desses cem anos de atuação no mundo inteiro. No Brasil, já são 89 escolas, sendo quatro delas no Rio Grande do Sul (escolas Arco-Íris, Candeia, Casa Ametista e Querência, todas na Capital). Nessas escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamenta, comunidades se formam para assegurar espaços que atendam a essas necessidades vitais da criança através de um currículo coerente e artístico. Há grupos que trabalham em prol de compartilhar a pedagogia Waldorf e de ampliar o acesso às suas práticas a profissionais interessados para além dessas próprias escolas. Essa é uma maneira de ampliarmos as perspectivas do ato de educar e ensinar em um país que necessita de nossa consciência em relação às questões sociais.
O que mais lhe chama a atenção nas crianças brasileiras? Essa percepção mudou desde a sua chegada ao Brasil? E nos pais brasileiros, o que mais chama sua atenção?
A criança brasileira é mais ágil, voltada ao movimento, mas menos reflexiva do que uma criança alemã, por exemplo. O corpo é um instrumento de alegria para ela, além de ela ser mais ruidosa. A respeito dos pais, penso que está surgindo uma dicotomia: uns protegem demais, não deixam ela se sujar na areia, na água, no vento, enquanto outros são descuidados, e a criança fica sem proteção. Cada vez mais sinto que é preciso desenvolver nos pais uma confiança de que a proteção é necessária, mas a liberdade também. O que é necessário é encontrar um equilíbrio para que a criança possa se desenvolver de maneira livre em um ambiente protegido, mas não estéril.
O QUE É A PEDAGOGIA WALDORF
Intimamente ligada à antroposofia, uma doutrina espiritual que se baseia, principalmente, nos ensinamentos do filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861-1925), a pedagogia Waldorf prega a liberdade individual, o ensino “vivo” e a aplicação prática antes mesmo da teórica.
A antroposofia, do grego “conhecimento do ser humano”, entende que o que distingue o homem dos outros seres da natureza é sua capacidade de decidir sobre si mesmo e de fazer escolhas conscientes.
O propósito de uma escola Waldorf a partir disso, é formar indivíduos em condições de zelar por sua liberdade, prontos a responder por suas decisões, de modo a garantir não apenas seu bem-estar pessoal, mas sua contribuição ao mundo.
O espiritualismo é outra marca: conforme a Sociedade Antroposófica no Brasil (SAB), “os seres humanos têm um nível de ‘substância’ espiritual, não física, mais complexa do que as das plantas e dos animais, daí sua distinção em relação a eles”.
Para os adeptos desse método, a aprendizagem que privilegia apenas o intelecto dificilmente atinge o ser humano por inteiro: as emoções e as sensações que acompanham a experiência de aprender dão sustentação ao que é captado intelectualmente.
Pensar, sentir e agir é o caminho da aprendizagem, defende essa pedagogia: quando a informação é elaborada no intelecto (pensar), passa pelos órgãos dos sentidos (sentir) e determina uma vontade (agir), ela se transforma em conhecimento, conforme seus adeptos.
Ute Craemer teve contato com esse ideário em seu retorno à Alemanha, após dois anos vivendo no Brasil. Começou a aplicar o método em 1975, em uma escola particular localizada em São Paulo.
Em 2019, tem se dedicado ao projeto CaminhAção, com atividades também em Porto Alegre, iniciativa que busca criar diálogos entre a antroposofia e culturas e filosofias espirituais diferentes, bem como os meios socioeconômicos vulneráveis e com a diversidade cultural no Brasil.
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Guilherme Justino (guilherme.justino@zerohora.com.br) em 24/11/19