Translate this Page




ONLINE
5





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


A Polêmica do Cancelamento de Palavras
A Polêmica do Cancelamento de Palavras

A Polêmica do Cancelamento de Palavras

Expressões racistas não cabem numa sociedade civilizada. Mas inventar significados tétricos para termos sem relação com racismo só atrapalha a luta por um mundo ...

Por Alexandre Carvalho em 21 jan 2022 - Revista Superinteressante

 

“Criado-mudo, não. O termo correto é mesa de cabeceira. Criado-mudo é um termo racista e surgiu para chamar escravos que ficavam parados ao lado da cama.” O trecho entre aspas aparece no site da Amazon quando um consumidor pesquisa aquele pequeno móvel quebra-galho, no qual você deixa seus óculos, livro, celular ou copo d’água antes de dormir.

 

A intenção é ótima. Mas, infelizmente, acaba dando corda para uma informação falsa. Porque não há racismo na expressão “criado-mudo”. Vamos aos fatos: o nome desse objeto é uma adaptação do termo americano dumbwaiter, um pequeno elevador que transporta comida entre os andares de um imóvel, inventado no século 19 (“dumb” é um termo para “mudo”; “waiter”, “mordomo”).

 

Na Alemanha, que não usou mão de obra escravizada em seu território nos tempos coloniais, também há a expressão “criado-mudo” (stummer diener) – é a palavra deles para “cabide de piso”.

 

O termo pode até ser de mau gosto, pois equipara pessoas a objetos. Mas não tem a ver com escravidão. A ideia de que se trata de um termo racista tem origem apócrifa e circula há alguns anos nas redes sociais.  De tanto ser repetida, começou a ganhar status de verdade. Só que não é.

 

Outra desinformação na mesma linha, que chegou a ser publicada em uma cartilha da Defensoria Pública da Bahia, se refere à expressão “nas coxas”. Ela remeteria a telhas “feitas de argila, moldadas nas coxas de pessoas escravizadas”.

 

Não há registro de tal prática, nem no Brasil colonial, nem em lugar algum do planeta. Tampouco ela faria sentido. “A tese é facilmente desmentível por uma fartura de argumentos”, escreveu Sérgio Rodrigues, autor de Viva a Língua Brasileira, na Folha de S.Paulo.

 

“O anatômico (só gigantes teriam coxas do tamanho das telhas coloniais brasileiras), o funcional (telhas moldadas assim teriam tamanhos e formas tão variados que inviabilizariam um telhado decente) e o econômico (por que ter produtividade tão baixa se era fácil providenciar moldes de madeira?).

 

“Não há uma etimologia precisa para a expressão “nas coxas” – talvez daí a livre interpretação surrealista relacionando-a à escravidão. O mais provável, porém, é que seja simplesmente uma expressão para “trabalho malfeito” advinda do fato de que um trabalho bem-feito é realizado numa mesa, e não sobre as pernas.

 

A polêmica sobre o cancelamento de palavras voltou aos holofotes no final de 2021, mais especificamente no Dia da Consciência Negra (20 de novembro). Foi quando a agência de checagem de notícias Lupa publicou uma lista de expressões tidas como racistas. A agência reproduziu diversos erros ali.

 

Além de “nas coxas” e “criado-mudo”, fazia parte da relação o termo “doméstica”. De acordo com o texto, a palavra teria vindo de “domesticada”, já que os escravos “eram vistos como animais”. Não é verdade. O termo foi registrado como adjetivo pela primeira vez no fim do século 14, 200 anos antes de as primeiras populações escravizadas terem sido trazidas para o Brasil. E vem do latim domus, que significa “casa”, a mesma matriz para “voo doméstico” e “economia doméstica”.

 

Como definiu Lygia Maria, articulista da Folha e doutora em Comunicação e Semiótica, em um texto sobre o assunto: “Palavras têm etimologia, e a linguística é uma área do conhecimento. Ao desvirtuá-las, espalha-se ignorância.”

 

Diante de alertas de seus seguidores, vale lembrar, a Lupa apagou a postagem e se retratou dos equívocos, publicando análises realistas das expressões.

 

Ofensas gratuitas

 

Por mais que, nos últimos anos, o Brasil venha tendo retrocessos (como Bolsonaro ter colocado um negacionista do racismo para presidir a Fundação Palmares), é inegável que a luta de mulheres e homens pretos por uma cidadania plena tem rendido conquistas. É o caso dos programas de trainee exclusivos para pessoas negras, que se disseminaram pelas empresas, e funcionam como uma ferramenta de inclusão social extremamente eficaz (a exemplo das cotas nas universidades públicas).

 

O debate para que expressões de origem racista sejam apagadas do cotidiano é mais uma dessas vitórias. Porque, é claro: os equívocos linguísticos são só uma parte da questão. Há, de fato, palavras que deveriam ser varridas para a sarjeta da história, pois ofendem mesmo se ditas por pessoas cuja retidão quando se trata de preconceito está acima de qualquer suspeita. Aconteceu com Caetano Veloso.

 

No programa Roda Viva, na TV Cultura, exibido no dia 20 de dezembro do ano passado, o cantor e compositor, de 79 anos, defendeu o uso do termo “mulato”, que os expoentes dos movimentos negros têm criticado. “Não vejo qual o problema de ‘mulato’. Meu pai era mulato, a pessoa que eu mais adorava e respeitava. Tem gente que diz que é tirado de ‘mula’. Qual o problema? Não tenho nada contra as mulas.”

 

Goste-se ou não de mulas, a comparação é um problema, Caetano. Mulas são a cria de um burro macho com um cavalo fêmea. E equiparar filhos de Homo sapiens de pele escura com Homo sapiens de pele clara à prole de animais de espécies distintas é, sim, um acinte – às pessoas negras e à ciência.

 

“Ah, mas não pode mais falar nada, quanto mimimi…”. O fato é que não pode mesmo. Ofender ou insultar alguém é crime. E aquilo que soa ofensivo varia conforme a língua e a sociedade se transformam. Logo, é natural a necessidade de atualizar o vocabulário.

 

Não acha um bom termo novo para substituir um que se tornou anacrônico? Não se aflija. Logo a própria cultura trará respostas. “O povo é o inventalínguas”, já cantou Caetano na letra de sua canção “Circuladô de Fulô”.

 

Dentro de uma etimologia real, com evidência histórica, há, sim, todo um time de usos da língua que deve ser aposentado. É ofensivo usar o verbo “judiar”, um sinônimo de “maltratar” que não disfarça o preconceito contra judeus.

 

É absurdo gritar “bicha” para o goleiro que bate um tiro de meta, como se uma eventual homossexualidade do atleta o diminuísse como esportista e ser humano. Também não é aceitável dizer “denegrir” – está bem entendido hoje que palavras que colocam a cor preta como sinônimo de algo ruim reforçam o racismo estrutural.

 

Justamente porque esses termos e expressões vagam entre o inapropriado e o criminoso, forçar a barra e disseminar informações falsas para cancelar certas palavras, distorcendo sua origem e significado, não ajuda em nada. Só acaba servindo de munição para quem quer continuar proferindo insultos gratuitos.

 

Porque não existe “fake news do bem” – todas causam problemas. Expressões ofensivas não cabem numa sociedade civilizada. Mentiras também não.