Translate this Page




ONLINE
74





Partilhe esta Página

                                            

            

 

 


Entender e Lidar com os Sentimentos das Crianças
Entender e Lidar com os Sentimentos das Crianças

DEIXE AS CRIANÇAS SENTIREM

 

A dificuldade dos pais em lidar com os sentimentos “negativos” dos filhos pode comprometer o desenvolvimento emocional na infância e na adolescência.

 

O que você está sentido? A indagação é habitual entre os pais que topam com o filho estampando ares de contrariedade. Frequentemente, a pergunta está sustentada por preocupações com a integridade física e não centrada em fatores emocionais. Quando se fala em contrariedade, entenda como cara amarrada, birra ou um ataque de choro descontrolado por conta de um brinquedo compartilhado sem vontade. Entre os adultos, essas manifestações podem estar associadas a sentimentos como ciúme, frustração, raiva, tristeza e medo. Entre as crianças, também. E, acredite, tanto quanto falar sobre sexualidade na infância, ampliar a discussões sobre essas sensações nesta fase da vida também encontra resistência, porque ainda paira a ideia de que criança “não entende”, logo, “não sente”. Pior ainda se o assunto se voltar aos sentimentos considerados “negativos”, alvo de teorias conspiratórias sobre formação de personalidade e caráter.

 

Psicopedagoga, terapeuta de família e membro da Associação Brasileira de Psicopedagogia do Rio Grande do Sul, Sandra Guimarães explica que, quando se trata de raiva, ciúme e emoções “ruins”, tende-se a dizer que sentir isso é errado, feio ou inadequado, mesmo que a realidade seja a de que todos os seres humanos convivem com esses sentimentos naturalmente. Desde muito cedo, manifestamos nosso repertório de emoções, o que varia é a forma como isso se dá. Sandra lembra que, nos primeiros anos de vida, a mãe e a família representam a construção do equilíbrio emocional no bebê. Antes de conhecer as palavras, ele registra impressões sobre si mesmo e sobre o mundo.

- Quando a mãe está estressada, tensa, apressada, a criança é exigente e não coopera. Quando a mãe está tranquila, a criança se manifesta pacificamente. As crianças pequenas são particularmente sensíveis aos estados emocionais da mãe – diz a psicopedagoga.

 

LIBERDADE NÃO SIGNIFICA PERMITIR AÇÕES AGRESSIVAS

 

À medida que os filhos crescem, os pais vão deparando com situações em que os sentimentos dos filhos exigem respostas mais complexas. É aí que alguns comportamentos, como a birra, as atitudes impulsivas de raiva e a tristeza se lançam como desafios no longo caminho de educar e garantir um desenvolvimento saudável. Muito comuns são a postura de reprimir essas emoções na criança ou usá-las como rótulos.

- Compreender que a criança é “dona! De seus sentimentos não quer dizer deixá-la fazer tudo. Falo em liberdade de sentir e não em liberdade de agir. Um exemplo é quando a criança bate no irmão porque está com raiva. As palavras da mãe não acabam com o pensamento agressivo, hostil, simplesmente elas provocam um ressentimento maior e culpa – diz Sandra.

 

A psicóloga Marina Gusmão Caminha, uma das coordenadoras do Instituto TRI, que se dedica ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais, reforça que nascemos com uma pacote básico de emoções formado por raiva, medo, nojo, tristeza, alegria, surpresa e amor, e parte delas nos serve como ferramentas de sobrevivência.

 

Quando se invalida esses sentimentos nas crianças, estamos desprezando seu repertório natural de preservação. Marina explica que a teoria de Darwin ensina que para cada emoção existe um sentido. No caso da raiva, em algumas situações ela até nos ajuda a impor limites ao outro. Tanto que, segundo a psicóloga, crianças vítimas de bullying têm, muitas vezes, déficit de raiva, não conseguem dar limites aos que as agridem:

- Um pai dizer para o filho que ele não deve sentir raiva ou ciúme seria o mesmo que dizer “não sinta fome” ou “não sinta sede”. Emoção é um disparo biológico, não há controle sobre isso da mesma maneira que não controlamos sede ou fome. Podemos, sim, manejar nossas ações quando temos esses disparos, como controlar um comportamento agressivo quando sinto raiva.

 

Marina usa a analogia de um barquinho no mar: a criança seria a embarcação, e os sentimentos, as ondas, que por vezes são suaves marolas e noutras fortes a ponto de desestabilizar a navegação. Os pais são os orientadores dessa viagem, precisam ajudar a conduzir o barquinho à terra firme.

 

Vencida a etapa de reconhecimento de que sentir raiva, tristeza ou ciúmes faz parte da natureza humana, em qualquer idade, é preciso organizar as manifestações dessas emoções, dando limites à maneira como são exteriorizadas e não ao direito de senti-las.

- Geralmente, quando vemos uma criança muito emocionada, vamos ao seu encontro com nossas palavras, mas elas não são ouvidas. Queremos ensinar, partilhar, usar a lógica, julgar, tranquilizar etc. Mas o segredo é: deixe primeiro que os sentimentos sejam expressos – aconselha Sandra Guimarães.

 

 

EMOÇÕES NÃO SÃO RÓTULOS

 

Depois de deixar a criança se expressar, os especialistas sugerem mostrar que a raiva é uma emoção genuína, mas não vale bater em uma pessoa por conta disso. Ciúmes ok, mas nada de agredir o irmão mais novo ou jogar o brinquedo no colega.

- Os pais são as principais figuras a ajudar a encontrar as formas de manifestar as emoções sem prejudicar os outros, como ter raiva e não bater – ressalta Marina.

 

Neste norteamento das atitudes dos filhos, os pais podem cair em armadilhas. Uma delas é rotular crianças e adolescentes a partir de seus comportamentos na tentativa de impedir a recorrência dessas manifestações consideradas inadequadas. Quem nunca ouviu afirmações como “aquele menino é muito briguento”, “a filha de fulano é birrenta”?

- Temos de entender que a criança está em desenvolvimento, e que isso implica aprendizado. Ao aprender, ela não vai acertar sempre – pondera Maria Guimarães Drummmond Gruppi, psicóloga e pedagoga que dirige o ponto Omega – Centro de Cuidados Infantis Bilíngue, em São Paulo.

 

Quando as coisas não saem como o esperado e no tempo imaginado, facilmente as emoções das crianças determinam o papel que têm em seus grupos e na família. O que sente medo torna-se “o guri covarde”, o que demonstra raiva ou ciúmes em algumas situações vira o “malvado”. E quando esses rótulos são “divulgados” pelos próprios pais, o peso e as consequências são mais drásticas.

- O pai chamar de burro é pior do que um amigo chamar de idiota, porque ele é a figura de referência da criança. Ele vai determinando como essa criança vai se vendo – alerta a psiquiatra Marta Knijnik Lucion, especialista em psiquiatria da infância e da adolescência.

 

É uma conduta que pode prejudicar porque ela passa a se identificar com a emoção, quando, na verdade, a criança é aquele barquinho que é sacudido por essas ondas. Passou a onda, volta o mar calmo – completa a psicóloga Marina Gusmão Caminha.

 

MEDO DOS PAIS É CRIAR SEM LIMITES

 

Aos pais, não se pode reservar somente o papel de “vilões”. Eles também têm – e muitas - fragilidades e precisam ser compreendidos em suas falhas e medos nessa árdua tarefa de educar e orientar os filhos. Diante dos sentimentos “negativos” dos filhos e das reações ditas inadequadas que promovem, eles temem que essas manifestações sejam sinais de transtornos de personalidade.

 

Marisol Montero Sendin, pediatra no Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, afirma que não se pode falar em transtornos de personalidade quando se trata de crianças e adolescentes, pelo simples fato de que, nessas fases da vida, a personalidade ainda está sendo formada. Não quer dizer que nessas etapas não apareçam sinais desses transtornos, mas chegar a um diagnóstico desse tipo depende de muitas variáveis. É importante, por exemplo, analisar a frequência dos episódios, a intensidade e o ambiente em que essa criança ou esse adolescente está inserido. Sobre o caráter, o pediatra reforça o poder avassalador da rotulação de comportamentos impulsivos, que podem ser, inclusive, sintomas de uma hiperatividade não tratada adequadamente.

- A criança tem respostas ao ambiente. Se ela fica só ouvindo “você é má”, “você só faz coisas ruins”, esse pode ser um caráter aprendido. Muitas famílias, ao resgatar a história de um adolescente que enfrenta algum problema, veem que nunca falaram coisas boas para ele – conta Marisol.

- Quando é rotulada, a criança ou o adolescente acaba correspondendo ao papel que a família lhe deu. E, muitas vezes,essa família não dá abertura para que ele troque de papel conforme a sua evolução – completa a psiquiatra Marta Knijnik Lucion.

 

Especialista em primeira infância, a pedagoga e psicóloga Maria Gruppi ressalta que, em crianças menores, a birra e o comportamento intempestivo nada mais são do que formas de manifestar frustrações. Como elas não têm o vocabulário para se expressar, usam o corpo – jogando-se no chão, por exemplo. A dificuldade com que os pais lidam com isso, segundo ela, tem a ver também com a cobrança social, resumida na ideia de que terão sua capacidade de educar e impor limites avaliada.

 

Os especialistas no tema salientam que para cada fase da vida há uma forma de expressar os sentimentos negativos. É esperado que uma criança de três anos faça birra diante de uma frustração. Uma de nove resolve isso de outra forma, porque já desenvolveu a capacidade de se manifestar melhor frente a essa emoção. Os pais devem ficar atentos a isso, assim como à frequência e a intensidade dos episódios de medo, tristeza, raiva e ciúmes. Psiquiatras, pediatras, psicólogos e psicopedagogos lembram também que a irritabilidade excessiva numa criança pode ser sintoma de depressão e deve ser comunicada ao pediatra da criança. Ele poderá avaliar a necessidade de se buscar ajuda mais especializada.

 

Alguns estudos, segundo a psicopedagoga Sandra Guimarães, focam na prevenção das psicopatologias já no início da vida, com trabalho dirigido a gestantes, pais e cuidadores. Normalmente, quanto pior é o comportamento da criança, mais ela é punida, desprezada ou criticada.

- O mau comportamento crônico pode ser porque ela tem uma visão deformada dela mesma. Ela acredita, no íntimo, que é inadequada e que não tem valor. Neste caso, é importante a ajuda profissional para que a criança resgate o respeito próprio e viva construtivamente o social. Romper o ciclo vicioso do “mau comportamento”, oferecer recursos que impeçam a criança de ter uma existência deformada. As defesas doentias são escolhas que a criança pode evitar se for ajudada – diz Sandra.

 

AÇÕES REGULADAS

 

A psicóloga Marina Gusmão Caminha, desenvolve, ao lado do marido, o psicólogo Renato Caminha, a Terapia de Reciclagem Infantil (TRI), um protocolo clínico aplicado a crianças que já apresentaram sofrimento a partir de ansiedade e depressão. Por meio da TRI, aborda-se a regulação emocional, a empatia, o reconhecimento das emoções e do que as motiva. Foca-se no tripé emoção, pensamento e comportamento.

 

Há três anos, eles também organizaram o Trabalho de Reciclagem Infantil Preventivo, o TRI-P, voltado à prevenção de transtornos e à proficiência emocional das crianças com atividades envolvendo pais e filhos. Em Barcelona, na Espanha, o TRI já é disciplina no mestrado em Psicopatologia na Infância, e os psicólogos já ministraram cursos sobre o modelo em outros países, como Estados Unidos, Austrália, Paraguai e Argentina.

- Quando (as crianças) conseguem regular as emoções e entendê-las em si próprias e nos outros, elas funcionam melhor individual e coletivamente – diz Marina.

 

T rabalhe suas emoções

R ecicle seus pensamentos

I nove seus comportamentos

  

Fonte: ZeroHora/Caderno Vida/Bruna Porciúncula (bruna.porciuncula@zerohora.com)

em 28/05/2017.