COM A PALAVRA ALDO FORTUNATI
Pedagogo, 60 anos. Italiano, especialista em psicologia evolutiva e educação infantil, autor de A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO PROJETO DA COMUNIDADE
PARA DE FATO DESCOBRIR AS CRIANÇAS, É PRECISO OBSERVÁ-LAS.
O protagonismo das crianças na educação, a participação decisiva da comunidade no ensino infantil e a importância de manter um currículo aberto, não limitando as possibilidades de aprendizado, são algumas das ideias defendidas pelo pedagogo Aldo Fortunati. Nos últimos 20 anos, ele, que também é docente da Universidade de Florença, coordenou projetos de pesquisa e atividades de monitoramento das políticas públicas da Itália, além de dirigir programas de cooperação internacional com a América Latina. No dia 14 (aconteceu em agosto), Fortunati dará uma palestra na Escola de Pais do Instituto Ling em Porto Alegre, às 19h, com o tema AS CRIANÇAS E A REVOLUÇÃO DA DIVERSIDADE. Nesta entrevista, concedida por e-mail (com tradução de Paula Baggio), ele fala sobre as revoluções no papel do educador, a necessidade de dar espaço à criatividade e curiosidade infantis e comenta exemplos inspiradores no ensino.
Em algumas obras, a exemplo de A EDUCAÇÃO INFANTIL COMO PROJETO DA COMUNIDADE, o senhor destaca a importância do envolvimento das famílias no ambiente escolar. Até que ponto é produtivo o diálogo horizontal entre pais, professores e diretores?
A relação entre escola e família representa geralmente uma questão primordial, inclusive quando falamos de Ensino Fundamental e Médio e, nesse ponto de vista, tanto a ideia de famílias como clientes quanto a de que elas precisam estar subordinadas às instituições educacionais estão erradas: devemos pensar em um relacionamento horizontal orientado para a troca, compartilhamento e colaboração do projeto educacional. É óbvio que não devemos esquecer que os papéis dos pais e dos professores não podem ser confundidos, mas eles devem ser considerados no mesmo nível. Ainda que essa ideia seja importante em todos os níveis escolares, quando falamos da educação nos três, ou até nos seis primeiros anos de vida, essa relação pode ser ainda mais próxima e construída com base na confiança que os pais devem ter em relação à escola de educação infantil: não uma confiança imposta, mas uma confiança conquistada por uma proposta de acolhimento da escola, que reconhece cada família e cada criança como um indivíduo único e não como um simples elemento a ser incluído em uma instituição. Também é importante falar sobre a responsabilidade da comunidade no desenvolvimento do projeto educacional da primeira infância: somente o forte envolvimento de todos pode apoiar um projeto não burocrático e, mesmo que cheio de hierarquias, aberto ao reconhecimento e à valorização do potencial das crianças como pessoas e cidadãos que a escola pode e deve apoiar quando se torna parte positiva na comunidade.
Como fazer com que a escola esteja inserida nesse ambiente familiar, cumprindo um papel como elemento importante na comunidade para além das aulas diárias?
Como eu estava dizendo, não há necessidade de confundir papéis – os pais precisam ser pais e os educadores precisam ser educadores –, mas a participação e o envolvimento das famílias não devem estar vinculados apenas a situações de avaliação periódica. Devem, em vez disso, ter diferentes ocasiões para acontecer – entrevistas individuais, encontros de grupo, festas, momentos de trabalho e oficinas, reuniões para compartilhar experiências educacionais e trazer novas ideias. Só assim a escola se transforma não somente em um ponto de referência para a comunidade, mas também em um recurso para ela.
O bom ensino vai muito além da relação professor-aluno. O que mais é fundamental ter à disposição em sala de aula – e fora dela – para que a educação seja tão boa quanto possível? Qual o papel também da infraestrutura escolar?
O ambiente educacional sempre foi considerado apenas como espaço para realização de experiências, e não como elemento para elas poderem tomar força e se desenvolver. Essa é também a razão pela qual a escola em geral tem dificuldade em superar o esquema de classes e salas de aula, em que as crianças ouvem os professores e fazem o dever de casa. Felizmente, muitas escolas estão mudando, não apenas tornando os programas flexíveis, mas também criando espaços que acolhem e promovem um protagonismo mais ativo das crianças. Esse aspecto – o espaço como um sistema de oportunidades organizadas – é uma base fundamental para uma escola de educação infantil. Devemos conceber os espaços disponíveis, na escola, como um sistema, uma rede, superando as segmentações rígidas. Claro que isso não significa perder referências ou entrar em confusão e, por essa razão, uma função como a de supervisor de educadores é importante. Esse papel de direção, no entanto, não deve ser realizado com um planejamento rígido e predeterminado de atividades, mas sim aumentando a flexibilidade, a cooperação entre crianças e o trabalho em pequenos grupos.
Vemos, no Rio Grande do Sul, em uma realidade que provavelmente se aplica a outros estados e países: As pequenas cidades alcançando bons resultados em educação. Há em comum entre elas uma proximidade de educadores, estudantes e familiares. Que lições se pode tomar disso para aplicar nas comunidades das maiores cidades?
Se analisarmos o comportamento das comunidades sociais ao redor do mundo, percebemos que a educação das crianças está presente em seu código genético, pois as comunidades – mesmo as mais pobres – se organizam de forma a assumir a responsabilidade pela educação das crianças como uma responsabilidade social, não apenas das famílias. Mas também é verdade que, nas comunidades maiores – como nos centros urbanos ou nos grandes projetos nacionais de educação –, emergem paradigmas de referência em que os conteúdos e programas são alinhados, e perde-se o valor que os recursos locais poderiam agregar para a qualidade dos projetos. Mas a verdade – e as experiências muito positivas que existem nas pequenas cidades são testemunhas disso – é que a escola de educação infantil encontra nas cidades menores os seus melhores resultados, por isso é necessário manter viva na rotina das escolas de infância a relação com as famílias e com a comunidade. Nas realidades das grandes cidades, isso deve ser desenvolvido em relação aos recursos presentes nos bairros, pensando na escola não como uma instituição fechada que segue os programas predeterminados, mas um lugar de relação e troca com a comunidade.
Muito se fala que a escola, com professor à frente escrevendo no quadro e seguindo um currículo predeterminado, está defasada. E tem se difundido a ideia de um educador que trabalhe mais como mediador, orientando os jovens em suas atividades escolares. Como o senhor vê isso?
Não sei se “orientador” é a palavra certa quando falamos do educador em relação às crianças, porque, na ideia do orientador, pode haver a subestimação da contribuição das crianças. No entanto, “educar” significa “e-ducere”, trazer para fora, e isso quer dizer dar valor às potencialidades e às competências das crianças. Por isso, prefiro dar ao educador um papel de “mentoria” no qual, a partir do que as crianças sabem e podem fazer – e, ainda, têm prazer em fazer – são incluídos os elementos que podem apoiar as crianças no desenvolvimento de seus processos de relacionamento e aprendizagem. Por essa razão, não é tão importante levar ao resultado que o adulto já tem em mente, mas sim oferecer oportunidades com as quais podem se desenvolver as próprias potencialidades, de acordo com modalidades e tempos não do educador, mas, isso sim, da criança.
Na obra THE EDUCATION OF YOUNG CHILDREN AS A COMMUNITY PROJECT, o senhor defende que o educador infantil precisa deixar de lado a ideia de ser “cumpridor de metas” e assumir o papel de responsável por experimentar, discutir, observando as oportunidades em vez de se concentrar em objetivos predefinidos. Como fazer isso?
Pode ser realizado exatamente como eu estava dizendo. Enquanto isso, confie nas habilidades e no potencial das crianças, dando oportunidades organizadas a elas. Já dissemos isso quando falamos sobre o papel fundamental de um ambiente que não é só um pano de fundo no qual as experiências acontecem, mas um elemento que impulsiona. E, finalmente, não ter pressa e deixar que o tempo necessário para a construção da aprendizagem seja o tempo da criança – e de cada criança individualmente.
A graduação em pedagogia, da maneira que tem sido realizada atualmente, contempla a formação necessária para transformar esse educador? Ou é preciso ir além? De que maneira?
Naturalmente, é essencial que um educador tenha uma educação universitária, pois assim poderemos contar com profissionais realmente competentes. A ideia de que o trabalho com a educação infantil não requer treinamento específico e de alto nível é muito antiquada e traz consigo o pensamento amador de que, para trabalhar com crianças pequenas, basta ter um dom e se relacionar de forma carinhosa. Ainda assim, precisamos esclarecer três questões. Em primeiro lugar, nem sempre as universidades estão prontas para a formação dos educadores da primeira infância. Acredito que devemos fazer maiores investimentos nos professores, que são responsáveis pela educação das crianças em seus primeiros anos de vida. Segundo: a formação de que precisamos não é apenas teórica, mas prática, e, por isso, na universidade, os estudantes devem realizar estágio em escolas infantis para entender a prática. Por fim, a formação nunca acaba e, por isso, devemos também investir na formação em serviço, cultivar essa perspectiva de reflexão e inovação das estratégias educativas que devem tornar-se um hábito permanente dos educadores.
Em uma abordagem educacional que prega a criança como protagonista, corre-se o risco de ter um jovem pouco interessado, que não questiona, não demonstra curiosidade, não quer aprender sobre coisas além de seus interesses imediatos? O senhor vê esse problema?
Francamente, não. Quem conhece crianças conhece sua curiosidade espontânea e extraordinária em relação ao mundo das coisas e das pessoas e sua atitude natural de se envolver ativamente nas experiências. Se isso não acontecer, não será por causa das crianças, mas da pobreza das experiências e oportunidades oferecidas às crianças pelos adultos. Portanto, o ponto é sempre o mesmo: ter adultos menos ansiosos para preencher as experiências das crianças com seus significados e objetivos, o que efetivamente inibe o protagonismo delas. E ter adultos atentos para fornecer oportunidades organizadas ricas e diversificadas que possam oferecer às crianças ideias interessantes sobre as quais expressar sua curiosidade inteligente e construtiva.
Como definir um currículo ideal para a infância – UM CURRÍCULO ABERTO AO POSSÍVEL, como diz o título de uma de suas obras? Se não se deve seguir modelos, como cada comunidade poderá definir suas prioridades e, ainda assim, tornar o aprendizado global?
Ao afirmar que não deveremos seguir modelos, me refiro a abordagens burocráticas baseadas em programas escritos previamente. Isso não significa deixar de ter diretrizes claras. Quando falo do valor do espaço como um sistema de oportunidades, quando falo de um adulto menos diretivo e mais como um mentor, quando falo de valorizar a individualidade e o tempo individual de cada criança, quando falo da importância de cultivar o relacionamento com as famílias, quando abordo a questão da formação em serviço como uma atividade a ser executada com continuidade, em todos esses casos, estou dando indicações, pontos em torno dos quais podemos construir um currículo não baseado apenas nos objetivos que o adulto tem em mente, mas no reconhecimento concreto do protagonismo das crianças.
Com a realidade, cada vez mais comum, de pais que trabalham durante o dia e não conseguem acompanhar a criança por muitas horas, o ensino em tempo integral tem surgido como opção importante. O período longe da convivência familiar também pode causar prejuízo para os mais novos, especialmente nos primeiros anos, em suas relações familiares?
Muitas vezes escuto sobre essa questão e – é claro – concordo que a qualidade do relacionamento das crianças com os pais e familiares em geral é importante. Mas, se esse relacionamento às vezes é fraco, não acho que isso depende de quanto tempo a escola funciona. Em geral, mesmo quando as crianças permanecem menos tempo na escola, em muitos casos elas não ficam com os pais, e sim são direcionadas a situações informais que nem sempre são de qualidade. Assim, a escola com longos períodos de tempo e grande atenção às relações de qualidade com as famílias é bem-vinda. Quando esse problema se apresenta, ele é muito mais do mundo do trabalho, que privilegia os interesses da produção e não está atento para conciliar o trabalho de seus funcionários com sua família. Por essa razão, é necessário pressionar por contratos de trabalho que, especialmente quando as crianças são muito pequenas, limitam o horário de trabalho dos pais.
Suas pesquisas com crianças já o levaram a rever conceitos que tinha sobre a infância?
Lembro-me de dois momentos importantes. O primeiro, quando percebi as conexões entre o estudo ao qual me dediquei inicialmente como pesquisador e a observação direta das crianças: as teorias são um guia importante, mas para de fato descobrir as crianças, é preciso observá-las. O segundo, quando percebi que bons projetos nem sempre são aqueles em que há maiores recursos disponíveis. Obviamente, recursos são necessários, mas, antes deles, precisamos de cultura e inteligência para entender como organizar e usar com maestria os recursos de que dispomos.
Quais são algumas das preconcepções que as pessoas costumam ter sobre a infância que não se mostram verdadeiras no mundo contemporâneo?
Ainda vejo muitas preconcepções difusas, sendo a principal delas a de subestimar a identidade das crianças e a extraordinária questão da diversidade e do potencial que elas carregam. Continuamos a ver as crianças como sujeitos fracos e não como pessoas com identidade própria. Temos a tendência de salientar aquilo que ainda não fazem ou conquistaram em detrimento daquilo que já têm e daquilo que poderão ter. Precisamente por isso, as experiências educativas que trazem ao centro o protagonismo das crianças são importantes, pois testemunham também através de fatos uma identidade de criança que precisamos conhecer e adotar para poder não apenas respeitá-las e reconhece-las como pessoas, mas para imaginar e projetar nosso futuro também através de seus olhos.
Até que ponto o exemplo de países como a Finlândia e as Nações Asiáticas mais desenvolvidas deve ser tomado como parâmetro para países como o Brasil e seus vizinhos latino-americanos?
Não creio que precisamos de modelos educacionais para serem replicados desconsiderando o contexto. Os elementos a partilhar são pensamentos – a partir de reflexões sobre a identidade das crianças – e algumas orientações de projetos, como o espaço educativo, a flexibilidade do currículo, a participação da família, a formação permanente e a valorização da comunidade. Tendo dito isso, cada um tem que pensar os demais setores conforme sua própria realidade, construindo interpretações e projetos originais e diferentes.
O que seus projetos e atividades envolvendo diálogos com a América Latina mostraram também de boas práticas sendo feitas por aqui?
Tentando não ser filosófico demais, gostaria de dizer que a diversidade das experiências é muito importante para reforçar nosso olhar com novas reflexões. Mesmo que muitas vezes ainda se pense que educar se trata simplesmente de uma realocação de habilidades daqueles que as dominam para aqueles que ainda não as conhecem, se pensarmos bem, a essência da educação consiste em colocar em relação diferentes olhares para crescer e mudar. Vale na relação das crianças entre si e com os educadores, na relação entre educadores e entre esses e pais, e vale muitíssimo também na possibilidade de conhecer outras experiências educacionais diferentes das nossas. Penso que esse é o ponto mais promissor das trocas internacionais. Trata-se de uma forma muito diferente da cooperação internacional tradicional, muito mais atenta ao respeito e à valorização das diferentes experiências na sua contribuição potencial para se incentivarem, através do intercâmbio, o desenvolvimento mútuo.
Fonte: Jornal Zero Hora/Caderno DOC/Guilherme Justino (Guilherme.justino@zerohora.com.br) em 11/08/19