DOIS MENINOS ANTIGOS.
POETAS – BANDEIRA E DRUMMOND CRIARAM POEMAS EM QUE UM EU-PERSONAGEM-CRIANÇA ENTRA EM CENA.
O POETA MAIS VELHO PARECE TER MAIS INSTRUMENTOS DE ANÁLISE E PODE IR MAIS FUNDO NAS ANGÚSTIAS E MAZELAS DESSA INFÂNCIA.
Mesmo que uma criança narre, em primeira pessoa, sua história verdadeira, ainda assim “eu” vira um personagem. Vira linguagem. Porque palavra não é mais a coisa, não é mais o fato, não é mais a pessoa. Num texto adulto, esse eu-criança narrado é memória e, pelo distanciamento no tempo, tende a ser mais ainda um personagem de ficção. Ficção de si mesmo.
Num poema, um eu-personagem-de-si-mesmo costuma estar presente na produção de diversos poetas. O português Fernando Pessoa pôs a nu o caráter de palavra e de ficção desse eu. Em vez de criar apenas poemas, criou poetas. Cada um com sua biografia, com sua visão de mundo, com sua estética própria, com seus poemas. E cada um com seu “eu”.
Assim, quando, por exemplo, Ricardo Reis, um desses poetas criados pelo autor, diz “eu”, é o “eu” dele, não de Pessoa. O gesto criativo do genial bardo português foi deixar claro que, num poema, “eu” é apenas uma palavra. E está com todas as outras no tabuleiro para que se crie com elas.
Dois grandes poetas brasileiros, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, criaram poemas em que um eu-personagem-criança entra em cena. É um “eu” visto afetivamente e, através da relação dele com o mundo, temos uma visão de um tempo que se foi e que tenta ser recuperado como discurso poético. No poema EVOCAÇÃO DO RECIFE, Manuel Bandeira inicia dizendo que não vai falar da cidade que aprendeu a conhecer como adulto, “mas o Recife sem história nem literatura/Recife sem mais nada/Recife da minha infância”. O poema mostra pelo olhar desse menino as brincadeiras de rua, as famílias sentadas a conversar nas calçadas, o aviso, através do sino da igreja, de fogo nas redondezas: “Os homens punham o chapéu e saíam fumando/ E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo”.
As primeiras experiências com a sexualidade: “Banheiros de palha/ Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/ Ela se riu/ Foi o meu primeiro alumbramento”. No final, a consciência do adulto diante do inevitável fim de todas as coisas: “Recife.../ Rua da União.../ A casa de m eu avô.../ Nunca pensei que ela acabasse!/ Tudo lá parecia impregnado de eternidade”.
O discurso associativo da memória encontra na forma do poema o ambiente para se construir aos nossos olhos. Versos longos, curtos, deslocamentos no espaço, a página como uma constelação. Esse é um dos poemas em que Bandeira melhor realiza sua busca explicitada no seu clássico poemanifesto “Poética”: “Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis”.
Drummond, já no seu primeiro livro, ALGUMA POESIA, traz seu eu-menino no poema “Infância”: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha mãe ficava sentada cosendo./ Meu irmão pequeno dormia./ Eu sozinho menino entre mangueiras/ lia a história de Robinson Crusoé./ Comprida história que não tem fim”. Ao final, depois de descrever cenas do seu dia a dia, conclui: “E eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robson Crusoé”.
Mais adiante, esse menino cresce e é relatada sua iniciação amorosa: “E como eu não tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira./ Um dia ela veio para a rede”.
Quarenta e sete anos depois, Drummond aprofunda e revisita essa infância no seu livro MENINO ANTIGO – BOITEMPO II. O poeta mais velho parece ter mais instrumentos de análise e pode ir mais fundo nas angústias e mazelas dessa infância. O horizonte fechado e sufocante dos valores familiares vem à tona. A religião, a culpa, o pecado, a sexualidade reprimida, tudo isso é revisto pelo olhar do homem que já viveu muito e precisa ressignificar esse passado para poder se libertar dele: “Beijo a mão do padre/ a mão de Deus/ a mão do céu/ beijo a mão do medo/ de ir para o inferno”.
A dificuldade de amar, de se declarar, revista pelo adulto que tenta ler o menino e seus impasses: “Você sentada na cadeira de palhinha./ Se ao menos você ficasse aí nessa posição/ perfeitamente imóvel, como está./ uns 15 anos (só isso)/ então eu diria: Eu te amo./ Por enquanto sou apenas o menino/ diante da mulher que não percebe nada”.
E cabem ainda momentos de bom humor, como em “Iniciação Literária”:
“Sair pelo mundo/ voando na capa vermelha de Júlio Verne./ Mas por que me deram para livro escolar/ a ‘Cultura dos Campos’, de Assis Brasil?”. Depois de dizer do tédio e do conteúdo desinteressante do livro, o poeta-eu-menino arremata: “Se algum dia eu for rei, baixarei um decreto/ condenando este Assis Brasil a ler sua obra”.
Fonte: Correio do Povo – CS Caderno de Sábado/Ricardo Silvestrin (Poeta e escritor) em 10 de outubro de 2016.