POESIA ENQUANTO URGÊNCIA DE LIBERDADE
Há quem se enfade ao deparar-se com um texto de conotação poética. Há quem desdenhe da poesia. Há quem pergunte: por que precisamos de poesia?
Ora, a escrita que flerta com o caráter poético é sempre distensão dos costumes, daquilo que já nos é tão cotidiano – o usual. Ao distender esse que é o comum da vida, no modo de dizer que abandona o ordinário, a poesia flerta com sentidos novos, flerta mesmo com a possibilidade de novas representações ou imagens. Porém, mesmo nesse modo de ser provocativa (ou evocativa), a escrita poética não abandona as formas e conteúdos habituais de maneira radical. Não. Ela se apoia exatamente naquilo que de algum modo é conhecido – o que se instaura como área comum da compreensão – para aceder a outras regiões de sentido. Na verdade, a motivação para a escrita poética é o consentimento que o escritor dá a si mesmo para ultrapassar o senso comum e oferecer um percurso alternativo para chegar mais além, em outra acepção do representar. O escritor que se põe no esforço de elaborar poeticamente retira do discurso familiar o sentido corriqueiro para então projetar algo que é, ao primeiro olhar, estranho. Em essência, a poesia é o que excede do comum e a partir do comum, na direção do incomum. Contudo, de algum modo, compreensível.
O que verdadeiramente está incluído no fazer poético é o caráter da alteridade – o que é ou está no outro, mas que não necessariamente já foi descoberto do modo como nos foi oferecido. Escrever poeticamente é postar-se diante de, estando junto com o outro de maneira análoga, mas não justaposta; estar com o outro conforme, mas independente. Enquanto denuncia a familiaridade do dizer, avizinhando a representação usual com aquilo que ele apresenta como novo, o escritor (no modo de elaborar poeticamente) convida-nos à aventura, a explorar a região que, até então, nos era desconhecida. Esse convite acontece como reconsideração do caráter especulativo do sentido, radicado naquilo que a imaginação – a partir dos conteúdos corriqueiros – é capaz de projetar como intenção da linguagem aprisionada pelos vícios da representação coletiva.
Não poderia haver sentido na elaboração poética se o outro não fosse origem e fim do processo de ressignificação. A poética é a reconsideração do outro no campo de suas possibilidades de compreender o mundo a partir de distensão do que está imediatamente dado como usual, familiar e corriqueiro – o banal. O texto poético é mesmo crença na capacidade do outro e, simultaneamente, respeito pelo outro.
Por que precisamos de poesia? Para que seja possível se libertar do condicionamento dos discursos requentados, da expressão rígida, libertar-se do dizer que se acomoda ao ouvido rude e desinteressado. Precisamos da poesia para repor no mundo da linguagem os sentidos que foram perdidos pelo caminho, sentidos abandonados em favor de um dizer meramente conveniente e aprisionador. Esse estímulo ao novo, esse estímulo à sensibilização de outras possibilidades para repensar o mundo é urgente. É preciso acreditar na capacidade do outro em entender, desde esse estímulo, que a possibilidade de ser de outro modo exige a reconsideração dos sentidos usuais e que isso recoloca escritor e leitor no modo de reconstrução dos valores de bem ser apenas diferente e não oposto. Nas palavras de um jornalista conhecido – o Vitor Diel: “É justamente em momentos como o atual que precisamos de estímulos à sensibilidade e à reflexão para repensar o mundo”.
Sim, a poesia urge. Precisamos da poesia. Mas para tanto, é preciso ensinar toda uma geração a percorrer as trilhas mais remotas da linguagem, daquela linguagem que, em outros tempos, era sinônimo de bem dizer-se.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Cássio Pantaleoni (Filósofo e escritor) em 4 de junho de 2016.