CECÍLIA MEIRELES: O EFÊMERO E O ETERNO
Cecília Meireles (1901-1964), a primeira grande escritora da literatura brasileira e a principal voz feminina de nossa poesia moderna, nasceu no Rio de Janeiro, onde fez seus primeiros estudos e se formou professora. Sempre preocupada com a educação de crianças, dedicou-se ao magistério, ao mesmo tempo que desenvolvia uma intensa atividade literária e jornalística, colaborando em quase todos os jornais e revistas cariocas da época. Em 1919, lançou seu primeiro livro de poemas, ESPECTROS, bem recebido pela crítica. A partir da década de 1930, já conhecida e respeitada, passou a lecionar literatura luso-brasileira na Universidade do Distrito Federal e a dar cursos e fazer conferências em vários países, como Portugal e Estados Unidos. Sempre cultivou um interesse enorme pelo Oriente e, em 1953, esteve na índia e em Goa.
A produção literária de Cecília Meireles é ampla. Embora mais conhecida como poetisa, deixou contribuições no domínio do conto, da crônica, da literatura infantil e do folclore.
É dela um dos livros mais lidos e apreciados de literatura infantil, ISTO OU AQUILO, que reúne poemas suaves e musicais sobre os sonhos e as fantasias do imaginário infantil: os jogos, os brinquedos, os animais, as flores, a chuva.
A POESIA: O NEO-SIMBOLISMO
A rigor, Cecília Meireles nunca esteve filiada a nenhum movimento literário. Sua poesia, de modo geral, filia-se às tradições da lírica luso-brasileira. Apesar disso, as publicações iniciais da escritora – ESPECTROS (1919), NUNCA MAIS... E POEMA DOS POEMAS (1923) e BALADAS PARA EL-REI (1925) – evidenciam certa inclinação pelo Simbolismo. Essa tendência é confirmada por sua participação na revista carioca FESTA, publicação literária de orientação espiritualista que defendia o universalismo e a preservação de certos valores tradicionais da poesia.
Além disso, a frequente presença de elementos como o vento, a água, o mar, o ar, o tempo, o espaço, a solidão e a música dá à poesia de Cecília Meireles um caráter fluido e etéreo, que confirma a inclinação neo-simbolista da autora.
O espiritualismo e o orientalismo, tão prezados pelos simbolistas, também se fazem presentes na obra da poetisa, que sempre se interessou pela cultura oriental e foi admiradora e tradutora do poeta hindu Tagore, do chinês Li Po e do japonês Bashô.
Do ponto de vista formal, a escritora foi das mais habilidosas em nossa poesia moderna, sendo cuidadosa sua seleção vocabular e forte a inclinação para a musicalidade (outro traço associado ao Simbolismo), para o verso curto e para os paralelismos, a exemplo da poesia medieval portuguesa.
Observe nos poemas abaixo a seguir a presença tanto de elementos como o mar, o oceano, o vento, quanto da musicalidade.
PEQUENA CANÇÃO DA ONDA
Os peixes de prata ficaram perdidos,
Com as velas e os remos, no meio do mar.
A areia chamava, de longe, de longe,
Ouvia-se a areia chamar e chorar!
A areia tem rosto de música
E o resto é tudo luar!
Por ventos contrários, em noites sem luzes,
Do meio do oceano deixei-me rolar!
Meu corpo sonhava com a areia, com a areia,
Desprendi-me do mundo do mar!
Mas o vento deu na areia.
A areia é de desmanchar.
Morro por seguir meu sonho,
Longe do reino do mar!
MÚSICA
Noite perdida
Não te lamento:
Embarco a vida
No pensamento,
Busco a alvorada
Do sonho isento,
Puro e sem nada,
- rosa encarnada,
Intacta, ao vento.
Noite perdida,
Noite encontrada,
Morta, vivida [...]
(Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987. O. 145.)
Raramente a poesia de Cecília Meireles foge à orientação intimista. Um desses momentos é representado por ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA (1953), que, pelo viés da História, abre importante espaço em sua obra para a reflexão sobre questões de natureza política e social, tais como a liberdade, a justiça, a miséria, a ganância, a traição, o idealismo.
Fruto de um longo trabalho que envolveu dez anos de pesquisas, ROMANCEIRO DA INCONFIDÊNCIA é “uma narrativa rimada”, segundo a autora, que reconstrói, fundindo história e lenda, os acontecimentos de Vila Rica à época da Inconfidência Mineira (1789).
Veja um trecho dessa obra:
Liberdade – essa palavra
Que sonho humano alimenta;
Que não há ninguém que explique,
E ninguém que não entenda!
E a vizinhança não dorme:
Murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
Mas fica escrita a sentença.
A EFEMERIDADE DO TEMPO
Cecília Meireles cultivou uma poesia reflexiva, de fundo filosófico, que aborda, entre outros, temas como a transitoriedade da vida, o tempo, o amor, o infinito, a natureza, a criação artística. Mas não se deve entender sua atitude reflexiva como postura intelectual, racional. Cecília foi antes de tudo uma escritora intuitiva, que sempre procurou questionar e compreender o mundo a partir das próprias experiências: a morte dos pais quando menina, a morte da avó que a educara, o suicídio do primeiro marido, o silêncio, a solidão. Ela mesma revelou os objetivos que buscava alcançar por meio da poesia: “Acordar a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam arrastar. Mostrar-lhes a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou de salvação – mas por uma contemplação poética afetuosa e participante”.
Desses temas, os que mais se destacam sã a fugacidade do tempo e a efemeridade das coisas. Tal preocupação filosófica, rico filão explorado por toda a tradição clássica, sobretudo pelo Barroco, tem bases na experiência pessoal da autora, conforme ela própria declarou:
“Nasci aqui mesmo no Rio de Janeiro, três meses depois da morte de meu pai, e perdi minha mãe antes dos três anos. Essas e outras mortes ocorridas na família acarretaram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram, desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi essas relações entre o Efêmero e o Eterno [...] Em toda a vida, nunca me esforcei por ganhar nem me espantei por perder. A noção ou sentimento da transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade.”
(In: Cecília Meireles. p.3.)
Ao reunir seus escritos para a publicação de OBRAS POÉTICAS (1958), Cecília Meireles não incluiu seus três livros iniciais, por entender que sua verdadeira maturidade poética se iniciara com VIAGEM (1939). A escritora publicaria, entre outras, estas obras de poesia: VAGA MÚSICA (1942), MAR ABSOLUTO E OUTROS POEMAS (1945), DOZE NOTURNOS DE HOLANDA e O AERONAUTA (1952), ROMANCEIO DA INCONFIDÊNCIA (1953), SOLOMBRA (1963) e CÂNTICOS (1981).
1º MOTIVO DA ROSA
Vejo-te em seda e nácar,
E tão de orvalho trêmula,
Que penso ver, efêmera,
Toda a beleza em lágrimas
Por ser bela e ser frágil.
Meus olhos te ofereço:
Espelho para a face
Que terás, no meu verso,
Quando, depois que passes,
Jamais ninguém te esqueça.
Então, de seda e nácar,
Toda de orvalho trêmula,
Serás eterna. E efêmero
O rosto meu, nas lágrimas
Do teu orvalho... E frágil.
(Obra poética, p.232.)