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A Poesia tem Gênero? por Maria Carpi
A Poesia tem Gênero? por Maria Carpi

A POESIA TEM GÊNERO?

O poema não resulta da vibração de um ser assexuado, defende escritora. O que não significa que seja masculino ou feminino

 

A revista Poesia Sempre, nº 10, da Fundação da Biblioteca Nacional, abrangendo diversas regiões do país, solicitou a 22 escritoras de poesia que respondessem a pergunta: qual a diferença entre poesia de autoria masculina e feminina?

 

Desde já saliento que essa pergunta está bem formulada através da palavra autoria. Se perguntasse a diferença entre poesia masculina e feminina seria uma incongruência.  Realmente, o corpo da escrita como mármore esculpido ou como tela após lançadas as tintas não é nem feminino nem masculino.  Somente a autoria tem gênero, não a obra.  A obra é universal.  Nesse sentido, apenas haverá diferença na produção da poesia, isto é, na maneira e técnicas de abordá-la.  No ofício de escrever. Porque há diferenças na sensibilidade feminina e masculina de transpor o estatuto do imaginário.

 

Tanto a mulher como o homem são chamados a se expressarem como seres poéticos.  A isso chamo de vocação poética.

 

Depois, numa outra ocasião, da Feira do Livro de Porto Alegre, fui convidada a falar sobre o tema: autoria feminina ou masculina.  A voz da mulher.

 

O homem não é o modelo do qual a mulher seria uma costela. Na poesia, masculino e feminino se cruzam, não há modo de separá-los. Há uma interação, um estar a dois, como afirma Bachelard: "No reino da imaginação material, toda a união é casamento".  Então e agora, a minha reflexão vale-se do poeta e crítico literário Otávio Paz: "Pela boca do poeta fala a outra voz".

 

Essa outra voz é o fio de Ariadne de todos os poetas.  Quando indagamos pela voz feminina na contextura social, logo nos vem à mente a presença da mulher como participante na formulação e na gestão das políticas públicas.  A mulher geradora de história.

 

E a voz da mulher na literatura e na poesia?  Por mais paradoxal que seja, ela é ouvida tanto na autoria feminina como na autoria de notáveis escritores e grandes poetas.  É essencialmente a voz das entranhas.  Uma corda feminina timbrada torna-se matéria e forma do verso.  Poesia é a residência do ser nas múltiplas vozes.  Assim, a poesia, mesmo a não escrita, não se declina entre poesia singular ou coletiva, municipal ou estadual, hermética ou aberta, engajada ou transcendente, clássica ou moderna, ou entre masculina ou feminina.

 

A voz da mulher ou a tez da pele, inclusive sua nacionalidade, alcançam a ser poema se, além do timbre e do ritmo, são universais. De igual modo, o poema não é passado nem futuro.  Ele é sempre presente, por ser o instante eterno. O poeta acolhe o tempo arquétipo e o profere agora.

 

Nesse sentido, a própria palavra poeta de expressar Il miglior fabbro não se flexiona.  Acredito que as diferenças individuais e a história pessoal do poeta mais contribuem para a unidade perfeita do violino e o violinista, da partitura e o ouvido atento. 

 

Um verso que guardo como talismã, de Jorge de Lima, irmão em profundidade do cubano Lezama Lima:

 

Para unidade deste poema,

Ele vai durante a febre.

Ele se mescla e se amealha,

E por vezes se devassa.

 

Poeta, homem e mulher, não importa o invólucro, é barro cozido em temperaturas altas.  E quando engendram poesia também se tornam parteiros da verdadeira luz, a concebida nas entranhas.  O léxico e a gramática se curvam à transgressão da poesia. Transgride para unificar. Sua crise gera a utopia. Sua utopia fermenta novas crises.  Uma mudança no gosto e nas ideias. Outra cadência nos passos. Outro erotismo. Outra política: a ética do rosto.  Quando o grande pampeano Atrahualpa Yupanqui exclama: "La Pampa és el cielo al revés" e do lado de cada fronteira repercute "o Pampa é o céu ao contrário", o que importa não é o artigo a definir o substantivo, mas a bela metáfora escondida no poema.

 

O poema não resulta da vibração de um ser assexuado. É masculino assumindo-se mulher. É mulher acolhendo-se homem. Não a nostalgia platônica da esfera partida em duas, levando cada metade a procurar a faltante.  Essa que falta, não é nem masculina nem feminina. É desejo e fome.  O poeta no poema é reencontro perene, a cascata desse encontro, o peso e a leveza, a recordação e o esquecimento, o claro e escuro de Solombra de Cecília. Eros e ágape.  Duas pessoas destinadas a perecer desde o ventre materno olham-se no rosto: eis a Poesia.

 

Qualidades essenciais ao poeta: a vulnerabilidade e as entranhas. A capacidade viril de acolher a ferida e as entranhas de engendra-la em canto. A sincronia dos contrários que se atraem e geram o texto que gerará outros textos.  Novamente seguro a mão de Jorge de Lima: "As vozes eram várias: o Canto era só um".  As vozes, homem e mulher, o Canto, a flecha cravada no lado esquerdo.  O homem, palavra escrita e a mulher palavra assoprada, sobre a página vazia e a escuta do silêncio: a outra voz. A tua, talvez.

 

Fonte: Zero Hora/Caderno DOC/Maria Carpi/poeta e defensora pública em 02/04/2023