MOMENTO NUMA BIBLIOTECA
Momento Num Café
(Manuel Bandeira)
Quando o enterro passou
Os homens que se achavam no café
Tiraram o chapéu maquinalmente
Saudavam o morto distraídos
Estavam todos voltados para a vida
Absortos na vida
Confiantes na vida.
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado
Olhando o esquife longamente
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
Que a vida é traição
E saudava a matéria que passava
Liberta para sempre da alma extinta.
Este poema é cinema.
Há um olhar-câmera que mostra as cenas. Vai passando o cortejo do enterro pela rua. Um grupo de homens no café, na calçada, tira o chapéu num gesto habitual, ritualizado, de respeito. São tomados de surpresa, interrompidos na conversa sobre as coisas corriqueiras do dia a dia. Não os distinguimos individualmente. É uma panorâmica, um passeio de câmera que os flagra tirando o chapéu e, quem sabe, recolocando-o e voltando à conversa. O olho-câmera encontra, no grupo, um homem que contrasta com os outros e fecha-se o foco nele. Esse observa pensativo o caixão enquanto seu chapéu segue em sua mão.
E, como, além de cinema, é poesia, há dois comentários no poema, um para cada cena. Na primeira, o poeta nos diz que os homens saudavam o morto distraídos, absortos na vida, confiantes na vida. Na segunda, que o homem que demorou olhando o esquife sabia que a vida é traição.
Muito pensei sobre esse verso. Um dia me dei conta: sim, a gente nasce, mas vai morrer. Aí está a traição. Confiamos na vida, mas ela, inevitavelmente, nos trairá. Também, em seguida, há a ideia de que o corpo que morreu, a matéria que passava, estava enfim liberto da alma. A alma, a psique, o que quer que mova esse corpo, extingue-se, livrando-o dessa agitação feroz e sem finalidade que é a vida.
Em treze versos, Bandeira nos revela uma visão sobre a vida e sobre a morte nesse encontro entre as duas, por um momento, num café. Não há uma rima. Os versos não têm um número de sílabas regular, uma métrica fixa. Há sim essa conquista formal dos poetas da sua geração de construir o poema pelo ritmo da fala, com versos longos e curtos. Uma fala prosaica, carregada de poesia.
O poema está no livro ESTRELA DA MANHÃ, de 1936. Foi ao ler Bandeira, em 1978, que vi, com meus 15 anos, a maravilha que é a arte do poema. Eu ouvia rock pesado: Deep Purple, Black Sabbath, Kiss, Queen, Pink Floyd e essa turma. Tocava um violãozinho, mas queria fazer uma banda como o Deep Purple. Comecei a escrever letras de música. Caso aparecessem os cabeludos me convidando para uma banda, eu diria que já tinha as letras. Fui à Biblioteca Josué Guimarães, no Centro Municipal de Cultura, em Porto Alegre, para ler poetas, pensando, com isso, aprender mais sobre como escrever melhor os versos.
Depois de ler uma antologia do Vinícius, levei pra casa um livro com uma seleção de poemas do Bandeira. Os assuntos surpreendentes, “o meu porquinho da índia foi a minha primeira namorada”, a ousadia, “não quero saber do lirismo que não é libertação”, os versos de todos os tamanhos, a mancha do poema na página como um a ilha rodeada de branco, tudo isso e mais, muito mais, me mostraram um novo prazer estético. Daí em diante, passei a ler e escrever poesia. Li, dos 15 aos 18 anos, tudo de bom que havia da poesia brasileira do século XX dessa biblioteca.
Depois, fiz Letras na UFRGS, segui lendo, escrevendo e publicando. Hoje, já vi muito da poesia de todos os tempos e de várias línguas. Tenho conhecimento suficiente para confirmar o que já sabia desde os 15 anos: bandeira, com “Momento num Café” e outras pérolas, é um dos maiores.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Ricardo Silvestrin (Poeta) em 4 de junho de 2016.