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O Poeta Em Cada Um: de Celso Gutfreind
O Poeta Em Cada Um: de Celso Gutfreind

O POETA EM CADA UM

 

Sem a capacidade (poética) de inventar, seríamos incapazes de lidar com a parte mais objetiva desta vida.

 

Fui visitar o amigo que fazia doutorado no MIT, em Boston.  Com as manhãs livres, consegui me inscrever num minicurso de escrita criativa em Harvard.  Poesia.  No primeiro dia, o professor, um sujeito aparentemente sóbrio, apresentou-se de forma relaxada:

- Tenho legitimidade para estar aqui.  Tentei todas as outras profissões, e nenhuma deu certo.

 

A turma riu, o curso deslanchou e impressiona ainda esse paradoxo entre a importância e a inutilidade da poesia.  Platão expulsou os poetas da sua República e, mais recentemente, Quintana confessou que a matéria poética é mesmo a casca inútil das horas.  Muitos filósofos e outros poetas deram o seu pitaco, mas talvez o mais certeiro veio de um psicanalista, o Donald Winnicott.  Ele colocou a poesia no primeiro plano da existência ao mostrar a importância do “tempo perdido” (a casca inútil) entre a mãe e o bebê para o desenvolvimento da pessoa.

 

É dessa “inutilidade” que vem a subjetividade e, sem a capacidade (poética) de inventar, seriamos incapazes de lidar com a parte mais objetiva e concreta desta vida.

 

Outros psicanalistas retomam a imagem do Winnicott, como Daniel Stern.  Para ele, estar com o outro simplesmente e compartilhar momentos de “harmonização afetiva” é necessário para um desenvolvimento saudável.  Banhar-se de ritmo, portanto, não seria menos importante do que tomar vacina ou ser bem alimentado.

 

Se o professor de Harvard tornou-se poeta depois de tentar trabalhos mais úteis, pode-se pensar no sentido inverso de sua anedota.  Logo, sem ter passado pela experiência poética, ninguém seria capaz de dar conta de qualquer profissão.  Eficiência, eficácia, sucesso, isso que hoje se valoriza, de Boston a Porto Alegre, não poderiam escapar da poesia.  Imagino agora o discurso de apresentação de um médico, frentista, advogado, porteiro, jornalista ou designer:

- Tenho legitimidade para estar aqui.  Tentei escrever e não deu certo.

 

Se realmente for um bom profissional, a poesia estará por perto, espiando e pensando:

- Ele é que pensa...

 

Por Celso Gutfreind/Psicanalista e Poeta/Publicado em ZH de 04/06/2015