UMA PEDRA QUE FICOU
Há 90 anos, Carlos Drummond de Andrade colocava uma pedra intransponível no meio do caminho da cultura nacional. Com um poema que considerava “insignificante”, publicado pela primeira vez em julho de 1928 na Revista de Antropofagia, o mineiro marcaria seu lugar no movimento, modernista e dividiria o País entre os que o achavam um gênio ou um idiota.
A obra era NO MEIO DO CAMINHO, que se tornaria conhecida, em tom de deboche, como “o poema da pedra”. Com sua estrutura modernista, valendo-se de repetições deliberadas, assim como do uso coloquial do português, o poema vanguardista chocou a crítica literária. “É o caso mais escandaloso da literatura brasileira. Lembro-me da minha época de escola, nos anos 1970, em que as pessoas ainda riam do poema, como se fosse um exemplo de que o modernismo era algo sem pé nem cabeça”, diz o poeta Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do Instituto Moreira Salles.
Dois anos após sair no periódico modernista, de circulação restrita, o texto foi incluído no livro de estreia de Drummond, ALGUMA POESIA (1930). A partir daí, começaram a se avolumar as críticas negativas. “E não houve uma alma caridosa que pegasse nessa pedra e lhe esborrachasse o crânio com ela?”, atacou Gondin da Fonseca, no Correio da Manhã, no aniversário de uma década da publicação do poema. “Antigamente, as pedras serviam para serem atiradas nos maus poetas; hoje, os versejadores modernistas as encontram pelo meio dos caminhos”, escreveu Flávio Brant no Diário de Notícias, em 1944.
Segundo Antonio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, NO MEIO DO CAMINHO é um poema de choque, usado como artilharia contra a sensibilidade parnasiana da época: “Faz parte do Drummond, vestindo a camisa das ideias da Semana de Arte Moderna, muito combativo. E essa combatividade pressupunha utilizar recursos, temas e formas absolutamente contrários à tradição”, diz o imortal.
Secchin afirma que a escolha da “pedra” como símbolo já era iconoclasta, numa época em que elementos como a lua e as flores eram privilegiados. “Temos essa conjugação de um elemento não poético, que é a pedra, dentro de uma estrutura sintática que também era considerada não poética. Drummond, portanto, ataca tanto na escolha do símbolo quanto na maneira de falar dele”, conclui.
Se a antipatia dos tradicionalistas contra o modernismo explica boa parte das reações iradas, há um outro fator que deu força aos ataques: a política. De 1934 a 1945, Drummond foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, no Ministério da Educação e Saúde Pública, e sua obra virou arma para a oposição ao governo de Getúlio Vargas. “Como não se podia exatamente atacar o Estado Novo, por causa da censura barra-pesada do Departamento de Imprensa e Propaganda, viram no Drummond uma maneira de atacar indiretamente o ministro e o governo”, lembra Eucanaã Ferraz.
A magnitude das reações ao poema surpreendeu Drummond, que considerava o texto indigno de tamanha bile – e até de tantos elogios, como os que lhe dedicou Mario de Andrade, que o achava “formidável” e “admirável”. Superadas as fases dos atritos modernistas e políticos, NO MEIO DO CAMINHO passou a ser quase unanimidade. É um dos poemas brasileiros mais citados em artigos, ensaios e mesmo poemas”, diz o poeta e imortal Antonio Cicero.
“Como podia eu imaginar que um texto insignificante, um jogo monótono, de palavras causasse tanta irritação, não só nos meios literários como ainda na esfera da administração, envolvendo seu autor numa atmosfera de escárnio?” Assim Carlos Drummond de Andrade resumia, em entrevista à rádio MEC, em 1954, seu espanto com a recepção ao trabalho publicado aos 26 anos.
Se os primeiros ataques vieram de críticos literários conservadores e professores de português ginasianos, quando o mineiro se tornou chefe de gabinete no Ministério da Educação do governo Vargas, a troça passou a lhe ser dirigida por qualquer um. Estimulado pelo poeta português Arnaldo Saraiva, o mineiro editou com ele um livro em que compilava referências dedicadas a seu texto. UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO – BIOGRAFIA DE UM POEMA foi lançado em 1967 e reeditado em versão ampliada em 2010, sob os cuidados de Eucanaã Ferraz.
A consciência de Drummond sobre a importância que NO MEIO DO CAMINHO adquiriria em sua carreira ficou registrada no poema LEGADO, de 1950: “Que lembrança darei ao país que me deu tudo que lembro e sei, tudo quanto senti? (...)De tudo quanto foi meu passo caprichoso na vida, restará, pois o resto se esfuma, uma pedra que havia em meio do caminho”.
Fonte: Jornal do Comércio/Caderno Panorama em 25/07/2018