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Luis Fernando Verissimo e Os Mil Anos
Luis Fernando Verissimo e Os Mil Anos

OS MIL ANOS

 

No ano de 585 antes de Cristo, Tales, da cidade de Mileto, uma colônia grega na atual Turquia, predisse que haveria um eclipse do sol – e acertou.  Duzentos anos depois, Aristóteles diria que naquele momento nasciam a ciência e a filosofia gregas.  Tales chegara a sua previsão não por poderes mágicos, mas pela observação do movimento dos astros, e o que ela revelava era que havia uma ordem até então insuspeitada no cosmo.  Os egípcios já haviam feito um calendário baseado nas fases da Lua mais de 2 mil anos antes de Tales.  A novidade da descoberta grega era a de dar o nome de ciência à curiosidade desenfreada e a especulações sobre a origem e o futuro do mundo na ordem cósmica recém revelada.  Contemporâneos de Tales, como Anaximander e Anaximandes, tinham, cada um, sua teoria a respeito.  A teoria do próprio Tales era de que a origem de tudo era uma única substância, a água.  Não estava muito longe do que se sabe hoje, que a vida na Terra começou nos oceanos. De um jeito ou de outro, o eclipse previsto inaugurou uma nova maneira de pensar, baseada na observação e na lógica.  E influenciou o debate sobre a convivência humana.  Afinal, se a organização do universo era previsível, a organização da “polis” também poderia ser, se conduzida racionalmente.

 

A próxima observação astronômica consequente grega de que se tem noticia é a do filósofo ateniense Proclus no anno Domini 475 – quase mil anos depois de tales de Mileto.  Não sei o que Proclus descobriu ou deduziu dos seus astros.  O importante não é Proclus, são os mil anos.  O que aconteceu com o que Tales parecia estar inaugurando?  Aconteceu que o irracional derrotou o racional.  Os mil anos entre Tales e Proclus incluíram uma recaída grega na superstição e no misticismo e num embrutecimento da vida civil, muitas vezes oculto pela exaltação feita por outros  filósofos das supostas virtudes democráticas de uma sociedade escravocrata em que as mulheres não tinham vez.  Incluíram o começo do cristianismo e o crescimento do seu poder sobre vidas e mentes.  E incluíram o começo da longa noite medieval, da qual o mundo só acordou, meio zonzo, com a publicação, em 1543, do De Revolutionibus, do Copérnico – outros mil anos depois de Proclus.

 

Às vezes, dá para pensar que chegamos perto do racional exemplificado por Tales e seus contemporâneos – afinal, conseguimos evitar a guerra nuclear, uma cura para o câncer é iminente e todo dia aparece um sabor novo de picolé – mas às vezes parece que estamos escorregando para mais mil anos de obscurantismo e estupidez.  Né não?

 

Fonte:  ZeroHora/F.F.Veríssimo (verissimo@zerohora.com.br) 24/09/2015