FLUIDOS
“Lá se foi outro romance”, diz um personagem do Woody Allen depois de transar com uma mulher. Não é incomum a ideia de que os, digamos, fluidos gastos no ato sexual são os mesmos necessários para a criação, literária ou o que seja, e que se deve escolher entre uma atividade ou outra. A ideia está na origem de outro mito, misógino, o da mulher que drena o homem da sua capacidade criativa com o sexo. E tudo tem a ver, indiretamente, com o exemplo de Onã, que desperdiçou o seu sêmen e por isso foi castigado por Deus. Desperdiçar o sêmen numa transa interrompida – o caso de Onã – ou gastá-lo em transas insignificantes são abominações aos olhos de Deus – pelo menos o Deus da Bíblia.
Não seria necessário outro argumento contra a tese de que a transa impede ou substitui a criação do que o exemplo de George Simenon, certamente o autor mais prolixo do seu tempo – só as histórias do inspetor Maigret são dezenas, e elas formam uma pequena parte da sua obra e que declarou ter dormido em toda a sua vida com 10 mil mulheres. Dez mil! A revelação de Simenon deflagrou várias especulações, começando pela matemática. Dez mil transas contabilizadas dariam quantas por semana, ou por dia? Elas incluiriam mulheres repetidas? Simenon foi casado duas ou três vezes: sexo com as próprias esposas entraria no cálculo? E com prostitutas? O que espanta no caso de Simenon é ele ter tido tempo para produzir tantos livros entre as transas, ou transar tanto entre a produção dos livros. E um dado importante: era um excelente escritor.
Claro que Simenon era um fenômeno que não pode servir de modelo para escritores principiantes.
- E o seu plano de ser como o Simenon?
- Vai bem. Já transei com 300 mulheres.
- Algum livro?
- Até agora, nenhum. Mas eu chego lá.
“Não se pode pensar ou escrever senão sentado.” Comentando essa frase de Gustave Flaubert, Friedrich Nietzsche disse: “Nenhuma ideia que não nos venha caminhando tem valor”. Simenon talvez tenha tentado desmentir os dois e experimentado pensar deitado, e acompanhado. A transa, para ele, seria uma espécie de busca de ideias, um alerta aos fluidos de que o grande ato viria depois do sexo.
Por Luís Fernando Veríssimo/Publicado ZH em 04/06/2015