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Amores de Antígona por Francisco Marshall
Amores de Antígona por Francisco Marshall

AMORES DE ANTÍGONA

 

Sófocles (497-406 a,C.) criou uma das melhores obras-primas da história, o ÉDIPO REI, e outra não menos bela, ANTÍGONA, tragédia com o nome da jovem heroína que enfrentou o tirano de Tebas, seu tio Creonte. Estas obras têm alimentado aos séculos, a cada leitor e espectador, a artistas, a ciências e à reflexão livre. A tragédia grega reflete com gravidade e poesia sobre tudo que importa, da cidade à condição humana, da vida familiar à vontade divina, da magia à filosofia. Os poetas trágicos eram admirados e respeitados pela cidade. Nós também os ouvimos, e ainda sentimos ecoar a frase de Édipo a Creonte “...mas como tomar o poder, sem dinheiro e cúmplices?” (v.540) e a declaração de Antígona: “não para odiar, mas para amar eu nasci” (v.523), um dos mais lindos versos da cultura clássica.

 

Esta frase fez com que tal obra pagã fosse admirada por monges copistas na Idade Média; acreditavam ler nela um antecedente da ética cristã, mas era muito mais. Antígona foi menina indefesa diante de soberano arrogante, consagrada no teatro de uma cidade de guerreiros, a falocracia ateniense. Vale olhar de perto o texto grego: antes dos dois verbos, odiar e amar, Sófocles, acrescenta o prefixo syn, que conhecemos de sinfonia e simpatia, e quer dizer “com, em companhia, ao lado, conjuntamente”. Então deve-se ler como se ela falasse “não nasci para odiar com os que odeiam, mas para amar com os que amam”. Ela fala, e ouve o sarcasmo do velho tirano: “então, se amas, vai amar aos mortos. Enquanto eu viver, uma mulher não governará”. A serenidade amorosa e sábia de Antígona é ficção de um poeta, mas desde então é fonte máxima, que inspira e desafia a todos nós, humanos humanizados.

 

Nesta semana, verteu nas redes sociais do Brasil o video-rap em que Gabriel, o Pensador declara-se feliz porque matou o presidente. Como estamos diante de um canalha odiado por quase todos, muitos festejaram o refrão, outros recusaram-se a desejar morte alheia; ponderou-se a conveniência de se eliminar alguém letal para milhões de conterrâneos, outros calcularam, desiludidos: mas o que vem depois? E se os poucos que amam o tal canalha (incluindo-se 13 deputados gaúchos) resolverem fazer o mesmo com seus adversários? Outros pensaram: será que o Brasil sairá deste ciclo sem executar algum desses malfeitores? Quem sabe não falta uma tragédia para despertar-se o gigante abobalhado? Antígona não diria que ama ao tirano (um amor insensato, impossível), mas que está com os que nasceram para amar.

 

Nós nascemos para amar, e para fazer coisas belas, e estamos perdendo um tempo dos diabos com as preocupações desta crise. Como todas as nações, temos lastro de problemas, mas o caos atual agravou-se quando trocaram democracia por hipocrisia e passaram a impor, em triunfalismo covarde e cego, um programa que inclui até a outrora improvável supressão da lei Áurea. Eles, como disse Édipo, “com dinheiro e amigos”, e nós em busca de sinfonia, simpatia e sintonia, amores de Antígona e forças para nadarmos à outra margem do rio, ou até uma nave que nos leve de volta à Grécia antiga.

 

Fonte: ZeroHora/Francisco Marshall/Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS (marshall@ufrgs.br) em 29/10/2017.