O LIVRO SOU EU
Os livros me construíram. Desde que minha mãe, pouco alfabetizada, me ensinou as primeiras letras, a meus quatro anos de idade, o neurônio da leitura e da escrita (que penso ser um só) acendeu sua luz, iluminando dentro do cérebro uma via preferencial. No caminho tive alguns tropeços. Estive longe de ter aquelas dificuldades de alfabetização, geradas por problemas da primeira infância, que, tal coo descreve Jean-Paul Sartre em O IDIOTA DA FAMÍLIA, teria tido o romancista Gustave Flaubert. Mas entre os quatro (ano das primeiras letras) e os nove anos me mantive num limbo entre a idiotice e algumas coisas sem sentido. Então veio o ano do salto: eu tinha nove anos de idade. Uma professora que, em dias de tempestade, a sala escura, se punha a contar histórias longínquas de sultões e sultanas que me encantavam. Foi esta professora que, no fim daquele ano, depois de minha reviravolta escolar, me presenteou com o livro A RAINHA DA NEVE, de Hans Christian Andersen.
No fundo, não sou o que sou: sou os livros que leio. Mais ou menos naquele sentido em que o de cinema Werner Herzog afirmou: “O que sou são meus filmes”. Todavia, ao longo da vida, minhas orientações de leitura divergiram: então, sou uma personalidade mutante. A escrita em mim é contingência. A leitura é imperiosa: preciso ser devorado diariamente pelas palavras para que o fogo dentro de mim não se apague. Tive uma fase profundamente alencariana aos 15 anos de idade: adorava os romances de metáforas floreadas de José de Alencar. Por ali comecei a ler Machado de Assis. No entanto, tarde um pouco a desviar as preferências. Um leitor em camadas que não pode ser visto nem em cada camada isoladamente nem na coleção das camadas mas numa relação complexa entre a camada e o conjunto de camadas.
Livros transmitem ideias. E emocionam. E criam linguagens. E trazem atmosferas diferentes. Surpreende que muitas vezes certos textos límpidos, objetivos pegam no leitor um clima de curiosidade alegórica, como em Ernest Hemingway e Franz Kafka: que significa este velho pescador com seus gestos em alto-mar? Que faz esta personagem dentro dum tribunal que não quer julgá-la, mas a processa? Segundo Marcel Proust, que pensava reproduzir em seu romance os movimentos da vida, mesmo que haja aí analogias paradoxais, nossa infelicidade de leitor se dá nas impossibilidades da apreensão total das coisas que um grande romancista traz. O leitor, como a personagem que está sendo lida, nos diz Proust com a sutileza de seu verbo francês cuja ideia e sintaxe mais posso interpretar do que traduzir aqui, tem somente a noção de uma pequena parte das coisas; o leitor, para seguir lendo; a personagem, para tentar ser ela mesma. Não é fácil a vida do leitor, ainda mais nos dias que correm: somos construídos por coisas lidas de que não temos uma clara percepção. Mais: estas coisas lidas, neste mundo cada vez mais prático e economicista, são frequentemente questionadas em sua utilidade. No entanto, a avalanche de palavras nos invade e quem as ama não tem como não deixar-se ir na correnteza.
Fonte: Correio do Povo/Caderno de Sábado/Eron Duarte Fagundes (Crítico literário e de cinema) em 22/04/2016.