ENCANTAMENTO
The Disenchanted, de Budd Schulberg, é um bom romance de um bom escritor. Só foi mais do que apenas bom para mim, porque foi o primeiro livro “para gente grande” que li. Um pouco prematuramente, já que só muito depois fiquei sabendo que se tratava de um relato romanceado da relação do autor com F.Scott Fitzgerald Os dois tinham colaborado num roteiro de filme, e o Fitzgerald que Schulberg retrata, o “desencantado” do título, é um escritor em desintegração, perto do fim. Na minha inocência de leitor de gibi, não tinha me dado conta desse significado camuflado do livro. Schulberg escreveu outros romances – o mais conhecido é What Makes Sammy Run? (“Por que corre Smuelzinho?”) – mas hoje é mais lembrado como o roteirista premiado de On de Waterfront (Sindicato de Ladrões), dirigido por Elia Kazan. Schulberg e Kazan tinham colaborado com a comissão do Congresso americano que investigava o comunismo e seus simpatizantes em Hollywood e denunciado muita gente. Sindicato de Ladrões é a defesa dos dois e uma apologia da delação. Além de um grande filme.
Outros livros significaram o mesmo que The Disenchanted depois que abandonei, definitivamente, os gibis. Foram como marcos na descoberta do prazer da leitura, numa viagem de revelação em revelação. Li os livros do meu pai, inclusive, escondido, o Caminhos Cruzados com suas cenas “fortes”. Lembro do meu deslumbramento com a primeira crônica do Rubem Braga que li. Era possível escrever bonito com simplicidade, sem precisar recorrer ao “poético” convencional. Através do Rubem Braga, cheguei aos outros autores da época clássica da nossa crônica: Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Antônio Maria, Stanislaw Ponte Preta. Esse era o único humorista de ofício entre eles, mas todos, até o mais “literário”, Paulo Mendes Campos, escreviam com humor. E o Antônio Maria mais do que todos. Talvez ninguém tenha representado como o pernambucano Maria o sabor especial da crônica brasileira, com sua mistura do lírico e do engraçado. Seu legado nem sempre é reconhecido como ele merece.
Li mais de uma vez O Encontro Marcado, do Sabino, chamado, com razão, de “o romance de uma geração”. Como, acho, todo mundo, só consegui ler o Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa, depois de três ou quatro tentativas de atravessar as primeiras páginas sem desistir. Finalmente consegui, e a recompensa por persistir foi o resto do livro, mágico. Além do encanto da leitura, chegava-se ao fim do grande Sertão com uma certa vaidade triunfal e uma sensação de conquista. O romance Perto do Coração Selvagem e os contos da Clarice Lispector também foram exemplos do prazer insuspeitado de um texto “difícil”. O primeiro romance do Moacyr Scliar foi outra revelação. Depois viria a descoberta do Rubem Fonseca.
E li muitos os americanos e os ingleses, começando com The Disenchanted. Hemingway, Dos Passos, Nathanael West, Saul Bellow, Philip Roth, Peter de Vries, o próprio Fitzgerald. Com William Faulkner tive de recorrer à mesma força de vontade usada para chegar ao fim do Grande Sertão: veredas, mas também valeu a pena. Descobri um autor chamado Evelyn Waugh, inglês, reacionário, carolão, mas que escrevia a prosa mais elegante e mais britanicamente humorística da sua geração. Li toda a sua obra.
Hoje leio pouca ficção. Leio mais sobre literatura do que literatura. Críticos e ensaístas como Roberto Colasso, Leslie Fiedler, George Steiner... Não descobri mais ninguém com o mesmo encantamento de antes. Mas foi uma viagem inesquecível.
Fonte: ZeroHora/L.F.Veríssimo (verissimo@zerohora.com.br) 06/09/2015