A SÍNDROME DO BOM RAPAZ
Já faz quase um mês, mas ainda tenho bem nítido o que vivi na palestra do escritor português Valter Hugo Mãe no Fronteiras do Pensamento. E que foi isso: a sensação de compreender algo de repente, um entendimento súbito, um conhecimento tão novo. No Salão de Atos da UFRGS, naquele 3 de agosto, a plateia foi brindada com a fala reveladora de um homem com intensa vontade de ser bom – bom no sentido de não ceder ao mal ou apenas ceder ao mal o espaço necessário para fazer valer o bem.
Essa vocação fez com que o autor sofra da “síndrome do bom rapaz” (grande sucesso junto ao público feminino) e que era o tema da noite. Valter falou que, na infância, sofria com uma rara doença que lhe tapava aos mãos de feridas. Contou que, no dia seguinte a uma promessa feita a São Bento, amanheceu sem as ataduras, sem as feridas ou as cicatrizes, fato que achou natural: a mãe pediu, o santo atendeu. Mesmo inocente do milagre, o menino sentiu o peso da obrigação, como se a ele coubesse zelar por um ordenamento de mundo bonito. Cresceu nessa batuta. Foi inevitável que se tornasse escritor.
De olhar limpo e firme, conversando francamente com o (ótimo) mediador Eduardo Wolf, Valter elencou algumas de suas precariedades, a maioria delas consequência dessa disposição para a bonomia. Ao escutá-lo naquele palco, me recordei, entre outros, de O Filho de Mil Homens, romance em que conta a história de Crisóstomo, um pescador de 40 anos que é triste sem consolo por não ter um filho. Pensei que um livro como aquele, de um lirismo apurado e de uma linguagem preciosa, só podia ter saído da mão de uma pessoa como o Mãe, vocacionado para tornar mesmo as coisas mais duras em fatos amoráveis.
Foi assim que me surgiu, e parece ter surgido para todos, a repentina compreensão de que é possível perpetuar o sonho. Compreendi, porque o Mãe falou com uma clareza solar, que a agressão é a arma dos fracos e que só os verdadeiramente fortes são capazes da generosidade. Entendi que a bondade é a sabedoria do bem. Entendi, mais do que tudo, que a literatura dos bons-moços pode salvar o mundo. E que o Valter Hugo Mãe já vai bem adiantado fazendo a sua parte.
Fonte: Jornal ZH/Cíntia Moscovich (cintiamoscovich@gmail.com) 31/8/2015