O SEXO DOS LIVROS
Hoje me peguei pensando se a literatura tem sexo. É possível classificar por gênero um texto literário? Existe algo como uma literatura masculina e uma literatura feminina? Não no sentido em que essas expressões são usualmente empregadas, de “recomendado para o público masculino”, “livros para mocinhas” ou algo assim, mas no sentido de uma masculinidade ou feminilidade inerentes ao próprio texto. Livro tem sexo? Você já parou para pensar nisso?
Vamos investigar um pouco essa questão, começando pelo caminho mais óbvio, que é comparar mentalmente textos escritos por homens e mulheres. Será que dá para captar se quem escreveu foi um homem ou uma mulher, com base apenas no texto? Fiz esse exercício aqui e convido você a fazer o mesmo, com os autores e as autoras de sua preferência.
Quanto a mim, por pouco não acabei esquecendo a minha pergunta inicial. Pois logo enveredei nessa linda constatação que é a superioridade feminina no reino das palavras. Bem cedo adquiri a convicção de que quase todo trabalho que um homem se propõe a fazer uma mulher é capaz de fazer melhor. Isso não é feminismo, é empirismo puro: fruto da simples observação dos fatos. Daí a minha convicção, que nasce da experiência. O rock and roll e outros serviços braçais são as honrosas exceções, que só confirmam a regra: em geral as mulheres são mais eficientes que os homens. Por que na literatura deveria ser diferente?
Não é preciso ir muito longe para encontrar bons exemplos disso que estou falando. Vamos começar aqui mesmo, pelo Brasil. Uma frase que gosto de repetir é que o maior escritor brasileiro não é homem e nem nasceu no Brasil. Essa é só a minha maneira favorita de me referir a Clarice Lispector.
(Para mim é indisputável a supremacia de Clarice em expressar o âmago da alma através das palavras da língua portuguesa, e esta é uma definição de literatura tão boa quanto qualquer outra.)
Pensar em Clarice quase sempre me remete a Virginia Woolf, outro belo exemplo. A técnica do fluxo de consciência, praticamente a última invenção digna de nota na História do Romance, foi muito melhor aproveitada em “Mrs Dalloway” que no “Ulisses” de James Joyce. E Virginia ainda teve o bom gosto de fazer a sua obra-prima com muito menos páginas!
Jane Austen chegou a ser considerada melhor que Shakespeare. Eu, pessoalmente, considero essa comparação totalmente descabida. Já a comparação entre Joyce e Woolf sugere uma pista interessante: talvez os homens sejam bons em inovar e as mulheres, em aperfeiçoar.
Falar em pistas conduz diretamente ao romance policial, que mostra bem esse processo de aperfeiçoamento. O romance policial é uma espécie de mitologia moderna, que foi captada pela primeira vez em seus elementos básicos por Edgar Allan Poe. Mas foi só com o Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, pouco depois, que a literatura policial alcançou o status de mito. E então chega Agatha Christie, que com simples eficácia aperfeiçoa o modelo intuído por Allan Poe e organizado por Conan Doyle: sua revolução consiste em limpar a trama dos excessos aventureiros e cavalheirescos, tão apreciados por seus antecessores. Em seus livros, a Dama descarta solenemente todo heroísmo romântico, como puro “no sense” masculino. O resultado dessa simplificação é evidenciar o desafio intelectual contido na história, o mistério que deve ser solucionado pelo leitor. E assim o romance policial alcança o apogeu em seu clássico formato de “livro-jogo”. Algum tempo depois, é a vez de P. D. James, outra simpática senhora inglesa, aprimorar mais um pouco as coisas, devolvendo para o romance policial a dignidade de literatura, ao investigar profundas questões existenciais juntamente com cada crime da trama.
Um contraponto masculino a essa literatura policial – e bem brasileiro – é Rubem Fonseca. Esse que é possivelmente o maior autor vivo da língua portuguesa consegue escrever livros que são grandes investigações literárias e, ao mesmo tempo, excelentes romances policiais. Seguindo a mesma cartilha, Patrícia Melo dá o toque feminino em uma certa contenção temática, que privilegia o “realismo” no lugar das obsessões oníricas do velho Rubão.
Se existe uma literatura masculina, certamente Norman Mailer é um de seus maiores representantes. Mas o trono de macho alfa da literatura indiscutivelmente cabe a Ernest Hemingway. Ninguém soube ser tão másculo e viril com as palavras... com a possível exceção de Gertrude Stein.
(Pensando bem, talvez os homens não sejam tão bons assim em inovar, talvez apenas tenham tido mais oportunidades que as mulheres para inovar ao longo da história.)
A superioridade masculina na literatura evidencia-se principalmente na quantidade. Os homens tinham que fazer alguma coisa para compensar o fato de não poder parir. Inclusive forjar toda uma cultura baseada na inveja do pênis, que nega a todo custo que por baixo dessa inveja existe uma outra, a inveja do útero...
Isso para falar da prosa. Já a poesia é tão escandalosamente feminina em sua essência, que dispensa comparações. A poesia de Charles Bukowski, só para citar um exemplo eloquente, é bela justamente por expressar tão bem o sagrado feminino com aquele coração velho, safado e beberrão!
Como eu suspeitava, esse assunto do sexo dos livros é bem buliçoso. Não aguenta ficar quieto por muito tempo. Pois já vinha me sugerindo um outro caminho, totalmente diferente: e se os livros pudessem fazer sexo e procriar? Como seriam esses filhos, gerados pelo sexo dos livros? Você já parou para pensar nisso?
Fabio Shiva é músico, escritor e poeta. Toca baixo nos Mensageiros do Vento (http://www.mensageirosdovento.com.br), em fase de produção de ANUNNAKI (http://youtu.be/tJhDrVK-BOQ), a primeira ópera-rock em animação brasileira. Fundou a Comunidade Resenhas Literárias (http://comunidaderesenhasliterarias.blogspot.com.br), que já fez circular mais de 1.500 livros pelo país. É facilitador da Oficina de Muita Música!, na Casa da Música (Funceb/BA). Já ministrou também a oficina de Meditação para Crianças, e as duas oficinas estão sendo transformadas em livros. Em parceria com Fabrício Barretto escreveu o livro de literatura/filosofia MANIFESTO – Mensageiros do Vento (http://www.mensageirosdovento.com.br/MANIFESTO_2012__mensageiros_do_vento.pdf). Publicou em 2013 o romance policial O Sincronicídio (https://www.facebook.com/sincronicidio) pela Caligo Editora (http://caligoeditora.com), que lança em setembro de 2014 a antologia Redrum (https://www.facebook.com/redrumcontos), com uma história de sua autoria. Tem pronto um livro de contos: Isso tudo é muito raro. Atualmente escreve seu segundo romance, Favela Gótica.