NAS ESTANTES
Olho os livros na estante e sinto uma tristeza imensa pelos que certamente nunca mais relerei. Sou tomado pelo ritmo do poema de Mario Quintana. Há tanto livro bonito, tanto livro esquisito, tanto livro que amei e jamais redescobrirei. Vontade não me falta de abrir cada livro e rever cada frase, especialmente as assinaladas, pois escrevo em meus livros, para me lembrar do que fui e do que pensei quando me deixei seduzir por uma passagem. Cada livro é um momento da vida, um projeto, um sonho, um aprendizado e uma pequena morte quando, ao final, a capa se fecha sobre ideias, personagens, iluminações, fórmulas e ensinamentos.
Acaricio lombadas, fecho os olhos diante de alguns títulos, vou de prateleira em prateleira por mares tantas vezes navegados. Há livros que conheço pela cor e que posso encontrar de olhos fechados no espaço que lhes destinei para que estivessem ao alcance das minhas mãos ou simplesmente das minhas vistas. Outros, no entanto, escondem-se nas estantes e, quando subitamente os redescubro, ao acaso, me arrancam cintilações do olhar. Tenho vivido para os livros como outros vivem para os filhos ou para gatos e cães ou, vi na televisão, até para uma porquinha. Não me gabo. Apenas descrevo essa relação. Gosto, quando ergo a cabeça para descansar da tela do computador, de ver o grosso volume das obras completas de Borges, os três tomos de “Em Busca do Tempo Perdido”, o belo exemplar de “As Flores do Mal”, Flaubert, Balzac, Rimbaud, Céline, Conrad, Machado de Assis e Guiraldes.
Ainda outro dia, enquanto chovia, dormi na minha poltrona vermelha e, como no poema de Pablo Neruda, “caiu-me o livro que sempre se escolhe ao crepúsculo, e como um cão ferido rolou-me aos pés a capa”. Era “Moby Dick”. Ando pela minha biblioteca e me comovo com tantos amigos silenciosamente à espera da minha atenção. Alguns guardam segredos da minha juventude. Outros têm os rastros do boêmio que fui, deixei de ser e certamente não voltarei a ser. Olho a capa verde-escura dos poemas de Cesar Vallejo e me enterneço. Salto para Antonio Machado. A poesia e a Cláudia são os maiores amores da minha vida. Há tanto livro que não lerei, tanta história que não verei, tanta poesia que perderei.
Paro diante de um livro e viajo no tempo. Eu tinha 20 anos, cabelos compridos, sonhos ainda mais longos, dinheiro curto, ambições imensas e noites inteiras para ler. Estou diante de Francis Scott Fitzgerald: “Suave É a Noite”. Não, as noites de Dick River e Nicole Warren não eram suaves. Nem as minhas. Se eles viviam as turbulências do luxo, do tédio e da loucura, eu experimentava a angústia do leitor voraz. Havia livros demais para ler e meu tempo era pouco. Caminho agora entre os meus livros e me dou conta de que perdi a guerra. Não lerei todos os livros do mundo. Não lerei nem mesmo todos os livros que me prometi. Gosto de ver, na Feira de Porto Alegre, essa mistura poética de livros, jacarandás floridos e pessoas risonhas. Disseram-me que o ladrão de livros não existe mais. Não sei se é bom ou mau sinal.
Fonte: Correio do Povo/Juremir Machado da Silva (juremir@correiodopovo.com.br) em 30/10/2015