“O JEITINHO NO BRASIL É PARA QUEM PODE"
ENTREVISTA: JESSÉ SOUZA
Nascido em Natal (RN), Jessé Souza, 55 anos, é professor na Universidade de Juiz de Fora. Doutor em Sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), fez pós-doutorado em Filosofia e Psicanálise na New School for Social Research, de Nova York, e livre-docência em Sociologia na Universidade de Flensburg (Alemanha). É também autor de a Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro (2000). A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive (2009) e os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (2010). Desde o ano passado, preside o Ipea.
Nos últimos anos, a herança colonial ibérica se tornou chave para explicar as mazelas nacionais, principalmente a corrupção. Jeitinho, confusão entre público e privado e superioridade das relações pessoais sobre a ordem racional e universal aparecem na imprensa, nas redes sociais e na academia como leituras certeiras e definitivas da alma brasileira. Nada disso convence o sociólogo Jessé Souza, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em seu mais recente livro, A TOLICE DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA, Souza, que é doutor e livre-docente em Sociologia por universidades alemãs, afirma que esse discurso, além de ferir a autoestima da população, serve como cortina ideológica para esconder um problema mais grave: a desigualdade social. Na opinião do sociólogo, a classe média tradicional, que idealiza os países desenvolvidos e se considera a guardiã da moralidade da nação, é incapaz de enxergar um sistema no qual exerce dois papéis: o de explorada pelos “endinheirados” e o de exploradora dos mais pobres e excluídos.
Na elaboração do argumento, Souza desconstrói as teses de três grandes intérpretes brasileiros, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. O autor aponta que as ideias do trio sustentam, com verniz científico, as noções de que, no Brasil, o Estado é corrupto, e o mercado, virtuoso. No mundo político, argumenta Souza, esses princípios têm servido de arma dos m ais ricos e dos liberais contra os governos Getúlio Vargas, João Goulart, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, voltados em sua opinião, à redistribuição da riqueza.
Desde o lançamento do livro, Souza tem sido atacado pelo caráter governista da obra. O fato de ter assumido um órgão estatal em abril do ano passado alimenta as investidas. É justo lembrar que a preocupação do sociólogo com a tese do patrimonialismo é anterior aos governos petistas. Em A MODERNIZAÇÃO SELETIVA, de 2000, ele já criticava o trabalho de Faoro e Sérgio Buarque. Agora, está muito mais incisivo. Leia a entrevista concedida por e-mail a ZH.
Seu livro faz dura crítica a Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. O que ainda há de válido nesses clássicos?
Freyre é um grande historiador, talvez o maior do Brasil, e seus livros podem ser lidos para além de sua própria interpretação teórica. Não é preciso comprar a avaliação do autor sobre si mesmo. Também existem passagens brilhantes em Faoro e em Buarque. O problema é que eles imaginam um “conto de fadas para adultos” para explicar o Brasil, um mito nacional. Em Freyre, esse mito ainda é positivo para produzir solidariedade nacional, enquanto em Faoro e Buarque trata-se do típico complexo de vira-latas. De qualquer forma, um mito, que não precisa ser nem é verdadeiro e serve a propósitos políticos, é péssimo para fundamentar uma ciência. Mas foi o que fizemos. E o fizemos engolindo todo o racismo não explicitado que está embutido na oposição entre as noções de espírito, moral e cognitivamente superior, e de corpo (emoção, afeto e sexo), moralmente inferior e com tendência ao logro e à corrupção. É incrível como as pessoas puderam comprar tamanha imagem depreciativa de si mesmas. Esse racismo contra si mesmo foi obra de um liberalismo – do qual Buarque e Faoro foram pioneiros e fundadores na versão do século 20 – que endeusava os Estados Unidos como paraíso na terra. Não vejo vantagem alguma continuarmos com isso. Temos é de criticar e fazer melhor.
Por que a tese do patrimonialismo é um “conto de fadas para adultos”?
Porque é falsa de fio a pavio. A tese do patrimonialismo diz que o Estado é apropriado privadamente por uma Elite de Estado, daí as críticas ao inchaço do estado e ao aparelhamento político. Diz-se que o Estado é apropriado por dentro para tornar invisível que é apropriado por fora, por interesses de mercado. A tese do patrimonialismo brasileiro serve para iludir o povo acerca de quem o está explorando. Se todo governo em todo lugar é apropriado privadamente, o problema fundamental é se é apropriado por poucos ou pela maioria. Entre nós, são alguns milhares de endinheirados que se apropriam tanto do Estado quanto dos mecanismos de mercado. Essa elite não está no Estado. É essa a verdadeira elite que construiu um mercado superfaturado com bens e serviços caros e muito ruins – que a privatização só piorou – e que explora a classe média todo dia com o superlucro e o superjuro. É essa elite que não paga imposto sobre a riqueza – deixando a conta para a classe média e os pobres –, já que compra via financiamento privado de eleições, parte expressiva do parlamento para manter seus interesses representados e nunca permitir leis impondo imposto sobre riqueza e patrimônio. É essa elite que, finalmente, controla a mídia que produz e distorce a informação de acordo com os interesses desse grupo, perfazendo assim todos os poderes que verdadeiramente importam em uma sociedade moderna. E ainda diz que o culpado de tudo de ruim é o Estado, que manda em tudo para não assumir a responsabilidade por nada. É ou não é um perfeito conto de fadas para transformar adultos inteligentes em tolos?
Para o senhor, a ideologia liberal, ao mesmo tempo que ressalta a tese do jeitinho e critica nosso suposto patrimonialismo, joga o peso da corrupção no estado, propaga a ideia de um mercado virtuoso e convida a sociedade a se sentir pura e ética como o mercado. O brasileiro é menos ou mais corrupto que outros povos?
O brasileiro definido como inferior, como guiado por emoções e inclinado à corrupção, é puro complexo de vira-latas. Não existe nem sequer o brasileiro em geral, já que cada classe tem tipos muito próprios. Não somos culturalmente piores ou melhores que ninguém. Na dimensão institucional, no entanto, podemos melhorar muito. No caso da corrupção, precisamos de melhor controle da relação entre política e economia para mitigar a compra da política pelo dinheiro. A compra de políticos e de partidos via financiamento privado é uma corrupção que todos veem, mas não choca ninguém. Afinal, é feita em proveito dos endinheirados. Nossa tradição de culturalismo vira-lata e de demonização do Estado quando ocupado pela esquerda distorce o tema da corrupção do nível institucional para o nível pessoal. Em vez de se discutir uma reforma política profunda, prefere-se manipular o povo e dizer que só um partido ou só alguns políticos têm culpa no cartório. É aí que temos a corrupção seletiva quando políticos do PSDB são blindados pela imprensa e outros são perseguidos impiedosamente.
Se existe jeitinho brasileiro, ele seria dos ricos, uma vez que o capital social depende antes do capital econômico e do cultural?
O jeitinho é para quem pode. Mas não é só no Brasil. O jeitinho é universal, só não pode ser muito visível. Alguém fala da lavagem de dinheiro de grandes empresas multinacional em paraísos fiscais? Por que ninguém acaba com os paraísos fiscais? A evasão de rendas e a sonegação fiscal são marcas do capitalismo desregulado, um eufemismo para a “corrupção legal”. O ponto principal é a manipulação do público de modo a deslocar a atenção para a corrupção seletiva. Como não existe uma delimitação clara da corrupção, posto que está em todo lugar e faz parte do jogo de ganhar dinheiro, então tem de se criar um bode expiatório. Entre nós, é o Estado demonizado quando ocupado por partidos com interesses em inclusão social e redistribuição de riqueza, como em Getúlio, Jango, Lula e Dilma.
O senhor diz que o mercado fomenta o preconceito contra o Estado. Mas são evidentes as falhas nos serviços, como educação e transporte público de má qualidade. E a agenda da esquerda para o estado parece sempre capturada pelos interesses das corporações de servidores.
Não sei se o mercado faz um serviço muito melhor que o Estado. Vamos comparar universidades privadas e públicas? A universidade pública é melhor que a privada porque atende aos filhos da classe média. É o serviço para os pobres que é ruim. Os pobres ou não possuem poder de pressão efetivo ou não sabem como exercê-lo. E quem explora a classe média, por exemplo, com um plano de saúde que é muito caro e comparativamente muito ruim são os endinheirados. Exceto o 1% mais rico, todos ganham com bons serviços públicos que precisam de formas alternativas de financiamento. A taxação da riqueza e do patrimônio, por exemplo, poderia garantir melhores serviços.
Sua tese é de que os casos de corrupção são impulsionados por interesses privados alojados no mercado. Mas, aceitando a tese de que tudo é caixa 2, na outra ponta partidos precisam se financiar. Como romper esse ciclo?
Este é o debate correto e inteligente. Ainda que não seja uma panaceia, acho que o financiamento público é importante se acoplado a medidas que tornem mais transparente a relação entre mercado e Estado. É possível mitigar e controlar a corrupção. Mas são medidas de inovação institucional que melhoram a situação e não a absurda divisão infantil da sociedade entre honestos e corruptos. Tua questão é certeira, uma vez que implica em uma estratégia universal e não seletiva de combate à corrupção.
O senhor chama a classe média de tola por acreditar no discurso de que o mal está no Estado. Mas, se a classe média é o grupo com acesso ao estudo e à informação, como pode ser tão tola? Mais de 10 anos de governo de esquerda não seriam suficientes para mostrar o “outro lado”?
Primeiro, a classe média é muito diversa. Temos a classe média moralista que é a tropa de choque dos endinheirados, posto que o moralismo produz uma satisfação real. O máximo para essa fração de classe é se ver como campeã da moralidade e, portanto, melhor que os outros. É uma satisfação infantil, mas real. A demonização do Estado serve como uma luva para isso. Mas essa fração da classe média é enganada. Troca uma satisfação fabricada para ela por uma exploração total de seu trabalho e de suas rendas que vão para o bolso dos endinheirados. É uma classe média mais pelo capital econômico e menos pelo capital cultural. Lê e se informa pouco a não ser pela dose diária de veneno midiático. Existem outras frações, como a mais crítica e com mais leitura e reflexão. É minoritária, mas existe. Entre as duas, há uma classe média que se imagina morando em Oslo e desenvolve uma sensibilidade norueguesa se preocupando mais com plantas e caça às baleias do que com a pobreza e a miséria que a cercam. E existem combinações mais complexas entre elas. Esse é um terreno sobre o qual uma pesquisa empírica abrangente nos informaria melhor. Na verdade, pretendo estudar esse ponto em breve.
A ideia de uma nova classe média surgida daqueles que melhoraram de renda nos governos petistas não é avaliada pelo senhor. Por sua tese, não basta aumentar a renda porque o diferencial da classe média tradicional é o capital cultural. Pode explicar essa distinção?
Capital cultural é uma forma de capital tão importante quanto o econômico. Capital cultural não é apenas escola e títulos universitários. É também e principalmente os privilégios invisíveis da socialização familiar. São esses estímulos que criam a capacidade de concentração – que não é natural, mas privilégio de classe –, a disposição ao pensamento abstrato e ao cálculo prospectivo. Quem tem isso é um pequeno vencedor quando chega aos cinco anos na escola. A classe média real tem isso. As classes baixas não têm e chegam como perdedoras à escola e, depois, ao mercado. Isso é privilégio passado de pai para filho e não tem nada a ver com mérito. Os pobres que ascenderam tiveram de lutar contra a ausência de privilégios e, por exemplo, trabalhar e estudar ao mesmo tempo, com 11 ou 12 anos de idade. Classe média é privilégio de nascença. Daí essas classes não serem médias de fato.
O senhor critica a linguagem rebuscada dos intelectuais, fala em ciência colonizada no Brasil e em ausência de debate na academia. Qual o erro da ciência no Brasil e o que deveria mudar?
O erro da ciência social brasileira – obviamente com exceções importantes – é ser uma imitação rasteira e exterior dos modos universitários europeus e americanos e produzir um contexto avesso à inovação e ao debate crítico. Existem os prédios, as publicações e as instituições de fomento, mas não se tem o principal: o espírito científico que é constante inovação e crítica. Tem-se reverência religiosa aos cânones, o que explica sua continuação até hoje com pouquíssimas críticas. Foi isso que possibilitou uma ciência social dominante servil ao poder do dinheiro. Tenho sempre grande confiança nas novas gerações. Podem e devem se construir em terreno novo e mais crítico.
Fonte: ZeroHora/Leandro Fontoura (leandro.fontoura@zerohora.com.br) em 28 de fevereiro de 2016.